Docinho
* para ler ao som de *
Kadir saiu mais cedo que o ponto permitia; supôs algumas desculpas para quando o chefe estivesse mais contente e disposto em desorientar certas convenções ancestrais. Escadas abaixo, embrenhou-se no carro e sacou uma foto do final dos anos 90. Sorriam duas pessoas apenas, em um descampado laico, uma menos presente, e outra sofridamente boba. Não era ele.
Louise gostava de despojar os pés na cadeira mais próxima; largateava sua preguiça às vezes esticada, sorrindo sozinha a malícia que recheava, lupinamente, os seus automáticos de sempre. E com os celulares no silencioso, curtia os últimos minutos do precioso silêncio antes que Kadir chegasse. Havia álbuns revirados em sua gaveta, sem nenhuma pretensão em disfarçar a invasão.
Ele chegou e empunhou a primeira pergunta antes da porta fechar. A foto, meio amassada no bolso, comportava um baú de importância cujos símbolos desconhecia. E Kadir queria saber, agora.
- Quem é? – seco e rápido.
- Quem, Kadir? – invisível.
- Esse aqui – demorou um pouco pra resolver a dobra na foto que a pressa criou.
- É melhor você me perguntar qual é a história dele – lacônica.
- Ele te comeu? – sorrindo um meia boca frouxo, sorriso de lagarto.
- ...
- ...
Uma ambulância passa na quadra vizinha. O som propaga porque não há comércio por perto. É um bairro de casas e plantas, morno de mais um final de tarde, no meio da semana. Louise recupera a perna em uma posição de cotovelos. Finalmente alcança os olhos pedrados de seu macho em xeque. Deixa escapar um expiro denso e revela o relato saqueado:
- Foi uma história estranha. Éramos amigos, mas ele insistiu em me amar. Oferecia carona, e quando eu entrava, tocava suas obviedades, como um "Eu preciso dizer que te amo" de Cazuza, sempre nessa insuportável sugestão adolescente. E havia flores também. Flores... Flores! Imagina? Logo eu, que nem gosto de ganhar... Se ele me conhecesse bem, saberia disso. Você bem que sabe disso... Nunca te decepcionei tanto como naquela vez das orquídeas importadas. Lembra? Rs – escapou um soluço de deboche.
- Aham. Continue – impávido.
- Ele dançou a valsa de formatura comigo; aquela dança que eu tinha reservado a outro.
- Outro? Quem? – ofendido.
- Não vem ao caso – seca e abrupta.
- ...
- Ele era primo de 3º grau do Bruno, que o apresentou pra mim por acaso, num encontro frívolo em filas de supermercado [Kadir não disfarça e prende os dentes com mais força]. Moravam na mesmo bairro, inclusive, próximo àquela lojinha charmosa de flores e café. [Kadir resmunga alto e cruza os braços com a foto entre os dedos] Mas, como você sabe, o Bruno me chutou tempos depois, e ele veio com flores para curar minha dor. Mais uma vez, esse crime.
- “Bruno”... – Kadir deixa escapar no fim do suspiro forte da dor estranha, aquela que transfigura o passado num presente de penitências.
- Kadu. Ele é ótimo, mas docinho demais, saca? Ele ///
[Interrompendo] - É ótimo? Como assim ///
[Interrompendo] - Enjoa igual comer quatro quindins, sem água. Um lorde inglês, como disse minha mãe certa vez, rs – dessa vez, o soluço foi um gargalho mesmo.
- ...
- Bom, ele não teve culpa se eu não soube amá-lo direito. Meu modo de amar é duro, sabes...
- Sei. Mas ele te comeu?
- ...
(Por Emmanuel Mirdad, deste blog aqui)
terça-feira, 29 de junho de 2010
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Não vem ao caso – seca e abrupta. Um lorde inglês, mais seco ainda.
ResponderExcluirKill me NOW.
Grande Emanuel! Sem a menor vergonha de ser homem machista !
ResponderExcluirClaro que comeu,e se vacilar, ainda come !
Pra um leitor, ser impresso no livro que lê é surreal!
ResponderExcluirTb detesto o estilo "docinho". Dá hiperglicemia. ;-)
ResponderExcluirBelo conto. "Ele te comeu?" é uma pergunta q não deve ser feita. Nunca. rsrsrs
Não, não, não comeu. Foi comido; ele é o docinho.
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