sábado, 25 de junho de 2016

do amor


O sentimento de ser eleito está presente, por exemplo, em toda relação amorosa. Pois o amor, por definição, é até mesmo prova de um verdadeiro amor. Se uma mulher me diz: amo você porque você é inteligente, poque é honesto, porque me compra presentes, porque não anda atrás das outras, porque lava a louça, fico decepcionado; esse amor me parece interesseiro.Como é mais bonito ouvir: sou louca por você apesar de você não ser nem inteligente, nem honesto, apesar de você ser mentiroso, egoísta, ordinário.

Milan Kundera in: A Lentidão. Editora Nova Fronteira, p.57.

sexta-feira, 17 de junho de 2016

escapa

Há algo de apavorante em ser tão pessoal e tão pública. Por instinto de preservação ou maneirismo, ela teme tornar-se demasiado visível. Cada vez mais refugia-se no enigma. Das mentiras, dos romances. Dirão que ela complica por gosto. Sim, sem dúvida é o que deseja. Na maior parte do tempo, vão atrás dela cegamente. Sem tentar compreender. A arte deslumbra. Ela escreve. Ela foge. Cada livro é uma escapada. Ele vive, no lugar dela, sua história maldita, proibida. Ele a torna suportável.

Frédérique Lebelley in: Marguerite Duras - uma vida por escrito. Ed. Scritta, p. 148.

quinta-feira, 16 de junho de 2016

de Lol V. Stein

Frequentemente, pouca coisa basta - um certo olhar, um certo riso, jovial, espontâneo - para inspirar a Duras um personagem que, em seguida, se impõe a ela, soberano e indestrutível. Dessa vez, trata-se de uma jovem doente que ela teve de acolher em sua casa, por um dia, e que, à noite, mandou de volta ao asilo. "Eu a conheci durante um dia inteiro", disse Duras, como se tivesse dito: a vida inteira. Não tornara a vê-la. Mas desse breve período vai nascer Lol V. Stein, esse personagem de nome estranho "que não nomeia", oco, trespassado no centro por um furo. Durante doze anos ela habitará toda a obra de Marguerite Duras.

Frédérique Lebelley in: Marguerite Duras - uma vida por escrito. Ed. Scritta, p. 162.

segunda-feira, 13 de junho de 2016

da (não)contemplação

"Vocês bebem chá no seu país?"
"No Brasil? Menos que café."
"Por causa do calor?"
"Por causa do nosso temperamento. Há muita contemplação em uma xícara de chá."
"E você não tem tempo para contemplar?"
"O tempo nos irrita. Nós estamos sempre querendo reiniciar a contagem, recomeçar do zero. O Brasil deve ser o único país do mundo onde as pessoas se desejam um bom ano duas vezes ao ano. no início de janeiro e no início de março. Como se a gente estivesse o tempo todo dizendo: esquece o passado, é a partir de agora que está valendo."
"E o café será para isso?"
"O café é uma bebida de um minuto, que se bebe antes de se tomar uma decisão ou antes de se planejarem as próximas duas horas do dia. O café é uma bebida sem memória".
"E o Brasil é um país sem memória?"
João sorri, dá de ombros. Foda-se a tradição, essa é a nossa tradição."
"Falando assim até parece que você odeia o Brasil."
"Não, diz João Pedro lentamente, navegando o sachê pela xícara. "Somos inofensivos, queremos ficar de bem com todo mundo. É o que nos salva".

Caio Yurgel in: Samba sem mim. Ed.Benvirá.