terça-feira, 25 de agosto de 2015

é isso

Cada dia de separação é apenas isso: um dia em que o sol nasceu e morre sem testemunhar o nosso abraço.

Inês Pedrosa in: Desamparo. Ed. Dom Quixote.

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

da arte

A arte é uma rede de comunições no tempo; há subestações de alta potência, Homero, Dante, Shakespeare, Bach, Goya... E há fiações, fusíveis, parafusos, isolantes: singelos e indispensáveis.

Paulo Mendes Campos

Imagem: Anna Eva Bergman.

domingo, 23 de agosto de 2015

do mar

Achava bonito, por uma ressonância simbólica e pessimista, o verso de García Lorca: "También se muere el mar". Pois li há pouco, numa entrevista de Cousteau, o grande oceanógrofo francês, esta afirmação deduzida de provas científicas: "O mar está morrendo".

Paulo Mendes Campos in: De um caderno cinzento. Companhia Das Letras, p. 97.

sábado, 22 de agosto de 2015

das decisões

"Eu era feliz e não sabia".
Não gosto dessa frase porque contém uma cota de lamentação. E acho que a gente nunca deveria lamentar nada, em particular as próprias decisões. Acredito que, no fundo, a gente quase sempre toma a única decisão que poderia tomar naquelas circunstâncias. Então, não vale a pena lamentar o passado. Mas é verdade que existe isso.

(Contardo Calligaris)

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

do tempo, do desbotamento

Com o tempo, tudo se conserva, mas desbota, como essas fotografias de um passado distante que eram fixadas em placa de metal. A luz e o tempo esfumam os traços mais nítidos, que aos poucos desaparecem da placa. É preciso trocar a imagem de posição para que a luz de um determinado ângulo caia sobre aquela superfície turva, e assim é possível reconhecer a pessoa cujos traços outrora eram refletidos num espelho. Da mesma forma desbotam no correr dos anos todas as recordações humanas. Depois, um belo dia, cai um raio de luz de algum lugar e então redescobrimos um rosto de repente.

Sándor Márai in: As brasas. Companhia das Letras, p. 16-17.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

da imortalidade

Deixaste de me responder, ingrato Sebastião, mas não penses que te culpo ou te castigo ou sequer lamento a tua decisão de silêncio. De nossa tão alta amizade guardo firmamento bastante para firmemente te querer bem pelo resto das nossas vidas. Talvez um dia morras, e eu não saiba - e isso significa apenas que te continuarei amando vivo, e que viverás em mim enquanto eu viver. É essa a imortalidade em que acredito.

Inês Pedrosa in: A eternidade e o desejo. Ed. Alfaguara Brasil, p. 172.

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

e não passa

O amor não lhe passou tão depressa quanto a fúria.

Inês Pedrosa in: Desamparo. Ed. Dom Quixote.

sábado, 15 de agosto de 2015


Chega um tempo em que nos cansamos de resistir. O sofrimento tem uma fronteira na qual nos esquecemos de que somos gente.

Inês Pedrosa in: Desamparo. Ed. Dom Quixote.

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Os sacrifícios tornam-nos apenas sacrificados

Ah, as teorias que eu elaborava sobre as vantagens terapêuticas do afastamento para o fortalecimento de uma relação, a importância da solidão para a construção do amor-próprio e sei lá que mais. Lérias. Parecia o primeiro ministro a explicar que a miséria nos engrandecerá e que os sacrifícios nos tornarão melhores. Os sacrifícios tornam-nos apenas sacrificados. Diminuem-nos. Tornam-nos piores. O amor precisa apenas do amor.

Inês Pedrosa in: Desamparo. Ed. Dom Quixote.

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

dos ponteiros do relógio

Perdemos a inocência quando aprendemos a olhar as horas do relógio. O tempo do adulto é um imposto cobrado pela inteligência do mundo, um freio de que fomos libertos na infância e de que podemos nos livrar ainda em estados excepcionais de paixão, de contemplação puríssima, de intoxicação e de loucura.

Paulo Mendes Campos in: De um caderno cinzento. Companhia Das Letras, p. 101.

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

do sabiá

Sabiá. Sabiá é um bom sujeito. Sabiá, se ele não fosse passarinho, era amigo da gente, aposto. Quando ele come fruta não é como sanhaço que come sem vergonha. Sabiá não, só não pede licença porque não sabe. E gosta também de andar no chão, passeando, como se não soubesse voar. É muito delicado e não gosta de humilhar ninguém. Sabiá foge quando a gente chega perto. É claro que foge. Mas é tão devagarzinho como se estivesse pedindo desculpa.

Paulo Mendes Campos in: De um caderno cinzento. Companhia Das Letras, p. 86.

www.vemcaluisa.blogspot.com.br

terça-feira, 11 de agosto de 2015

do tempo

<É só um ano>>, dizia. Como se um ano fosse pouco para quem levou cinquenta a encontrar-se. Apeteceu-me gritar-lhe que cada dia da nossa vida tem de recuperar as décadas em que nos amávamos às escuras, tacteando corpos errados, desconhecendo a existência um do outro. Mas não tinha o direito de fazer isso - neste ano de ausência serei obrigado a aprender esse amor difícil que toda a viva evitei. Ocultei o meu desamor no clarão verde dos olhos de Clarisse, como antes de a conhecer o ocultava em todas as imitações de amor que me apareciam.

Inês Pedrosa in: Desamparo. Ed. Dom Quixote.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

do que falta

Sentia-me um estorvo. A minha tendência autodestrutiva reemergia, amarmos e sermos amados não basta para nos salvarmos, se nos falhar o amor-próprio.

Inês Pedrosa in: Desamparo. Ed. Dom Quixote.

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

dos olhos

Clarisse e os seus olhos verdes, tão profundos, tão tristes. Estamos quites, eu também estou triste. Encontro-me vazio.

Inês Pedrosa in: Desamparo. Ed. Dom Quixote.

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Do que acabava

Sempre que acabava uma história de amor - e acabaram todas - voltava a pensar nele. Raul Sousa parecia uma espécie de arquétipo com o qual comparava todos os homens reais que me decepcionavam. Ria-me para mesma, pensando que a grande qualidade de Raul era que eu não o conhecia, de facto. Fiz dele uma espécie de horizonte, para não desesperar com os enjoos da viagem.

Inês Pedrosa in: Desamparo. Ed. Dom Quixote.