Atrás da máscara
"Nós buscamos outras realidades porque não sabemos como desfrutar da nossa; e saímos de dentro de nós mesmos pelo desejo de saber como é o nosso interior."
(Montaigne)
Raduan Nassar não suportou ser um grande escritor e desistiu da literatura para criar galinhas. Trocou a criação estética, que é complexa e desregrada, pela mecânica suave da avicultura, e parece muito satisfeito com isso, tanto que, resistindo a todos os apelos, se recusa a voltar atrás em sua decisão. Meteu-se assim em uma situação embaraçosa na qual o exterior (a figura do escritor) e o interior (o ato de escrever) se confundem, armadilha em que, de modo mais discreto, todos os escritores de alguma forma estão presos, e que não chega a configurar uma escolha, mas um destino. Raduan abandonou a ordem do verbo, que está sempre contaminada pelo vazio e pelo espanto, para retornar à ordem natural dos animais, que é mais silenciosa, mas também mais previsível. Ovos, poedeiras, rações, pequenas pestes podem ser controlados; a escrita, não.
O sucesso de seus dois primeiros livros, Lavoura arcaica e Um copo de cólera, parece ter excedido em muito aquilo que Raduan esperava de si, e, ultrapassado pela própria obra, ele tomou a decisão de recuar. O sucesso, em seu caso, tornou-se uma carga: ele é aquele que não suporta vencer e, assim que a vitória se configura, precisa fracassar para se tornar menos infeliz. Restou a sombra de algo intolerável, a literatura, que, vista sem as pompas da reputação e da fama, tem a aparência de uma emboscada. Escrever não é só seguir uma rotina, manter-se atento e cumprir as regras dos manuais.
Mas por que terá Raduan, ao tomar a decisão de abandonar a literatura, conservado para si a imagem de escritor? Por que terá resolvido ser um homem com duas sombras — uma do escritor consagrado, outra do sujeito que desistiu de ser escritor? Raduan não é um Rimbaud, que, ao resolver que a escrita não o interessava mais, virou a página de sua biografia e, trocando de máscara, foi viver como um mercenário na África. Ao contrário, mesmo desistindo da literatura, ele não deixou de se apresentar, quase obstinadamente, como um escritor militante. Raduan é, ninguém tem dúvida, um grande escritor. Por isso, a solução que deu a seu impasse chega a parecer, às vezes, mentirosa. Quem estará dizendo a verdade: o Raduan que desistiu da literatura e se tornou só um homem silencioso com suas galinhas, ou o Raduan que, mesmo sem escrever, insiste em se ver como um escritor?" (...)
(Do livro *Inventário das Sombras, de José Castello, Editora Record, Rio de Janeiro, 1999, "Atrás da Máscara", pág. 173)
* Mais uma dica de leitura imperdível. Eu leio o Castello todo sábado, no caderno de literatura do O Globo. Também fiz um curso que ele ministrou, há tempos. Inventário das Sombras é um livro demasiado especial - para mim.
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uma sessão boa de Raduan aqui!
ResponderExcluirVanessa,
ResponderExcluir«Nascemos para cumprir o nosso designio e tudo se deve submeter a essa única circunstância»
(NOVALIS)
O teu texto é belissimo e muito actual! Adorei...
Um beijo
AL
Não fazia idéia que Um copo de cólera também era dele...
ResponderExcluirImpressionante...
abraço e belos postagens!
adorei o texto.
ResponderExcluirfiquei pensando em mim.
quando paro de escrever, percebo que fujo de mim, vai ver é isso, ele só está a fugir, dele mesmo.
Raduan escreve pelos ovos da galinha que cria, é vida sem parar, como nos versos. De certa forma, ele terceirizou a criação, talvez, continue criando, em meio ao cacarejar, quem sabe acocorado em seu silêncio criativo.
ResponderExcluirAnotada a dica. Ainda não li ou vi o filme "Lavoura Arcaica". Achei melhor esperar, dado o arrebatamento da obra.
ResponderExcluirJá o Castello é meu ídolo, tb o leio com devoção cega. Que inveja de ti! Conviveu um tempo com aqueles olhos blasé. rs
E a literatura é de fato uma emboscada. Caímos nela, não? Extasiadas.
Vanessa, ótimo texto!!!
ResponderExcluirAmiga, tem uma "brincadeira" pra vc lá no meu cantinho!Bjks e boa quarta!
Flávissima
Riquíssimo este livro :) estou à procura dele.
ResponderExcluiracho que vê lá Estante Virtual ;)
Texto definitivamente poderoso.
ResponderExcluirou será que ele simplesmente se acha completo com as duas obras, eu acho uma imensidão dois romances,
ResponderExcluirbeijo
eu acho de um pseudo 'intelectualismo' pedante esse escrito do J.C, tempos atrás até coloquei no meu blog. E bem fez Nassar, pois depois de escrever o que escreveu, agora fica com as galinhas. Admirada ficaria com um sujeito q escreve o q ele escreve e entra pra rodinha.
ResponderExcluir"Só um idiota recusaria a precariedade sob controle, sem esquecer que no rolo da vida não interessam os motivos de cada um - essa questãozinha que vive te fundindo a cuca - o que conta mesmo é mandar a bola pra frente..." Um copo de cólera
gostei!
ResponderExcluirfaz tempo que não apreço por aqui... cada vez melhor, adoro!
beijos no coração.
Gostei,
ResponderExcluirE por isso que sempre passo por aqui, tem sempre algo bom a absorver...rssr
Vanessa,
ResponderExcluirnuca li ele, mas lendo teus escritos permaneceu a proposta de conhece-lo,
beijos