Aos meus leitores-amigos-quem-passa-aqui,
Agorinha mesmo o Real - aquilo que invade o sujeito - bateu à porta. Sendo mais objetiva: tive um encurtamento de prazo de 10 dias, num trabalho acadêmico, que eu nem havia começado. Ou seja, f...
Por isso este post, para dizer que sumo MESMO até o dia 10 de julho. Sem postar, sem ver os blogs que adoro, sem msn, sem ligar para os amigos, meio alheia ao mundo externo.
Contatos/recados/afins, por favor, pelo e-mail: vanessa.sza@bol.com.br - não uso o do Gmail nem o do Hotmail.
A foto acima é de uma das pilhas de livros que me esperam a serem lidos.
Grata pela compreensão e já com saudades antecipadas do meu Divã e de todos os que passam por aqui. Fiquem com os post´s antigos, sempre atuais, tal qual o inconsciente, que é a sua eterna atualização. Vejo-os de volta dia 10 ;)
Beijos e afeto,
Vanessa
terça-feira, 29 de junho de 2010
Docinho
Docinho
* para ler ao som de *
Kadir saiu mais cedo que o ponto permitia; supôs algumas desculpas para quando o chefe estivesse mais contente e disposto em desorientar certas convenções ancestrais. Escadas abaixo, embrenhou-se no carro e sacou uma foto do final dos anos 90. Sorriam duas pessoas apenas, em um descampado laico, uma menos presente, e outra sofridamente boba. Não era ele.
Louise gostava de despojar os pés na cadeira mais próxima; largateava sua preguiça às vezes esticada, sorrindo sozinha a malícia que recheava, lupinamente, os seus automáticos de sempre. E com os celulares no silencioso, curtia os últimos minutos do precioso silêncio antes que Kadir chegasse. Havia álbuns revirados em sua gaveta, sem nenhuma pretensão em disfarçar a invasão.
Ele chegou e empunhou a primeira pergunta antes da porta fechar. A foto, meio amassada no bolso, comportava um baú de importância cujos símbolos desconhecia. E Kadir queria saber, agora.
- Quem é? – seco e rápido.
- Quem, Kadir? – invisível.
- Esse aqui – demorou um pouco pra resolver a dobra na foto que a pressa criou.
- É melhor você me perguntar qual é a história dele – lacônica.
- Ele te comeu? – sorrindo um meia boca frouxo, sorriso de lagarto.
- ...
- ...
Uma ambulância passa na quadra vizinha. O som propaga porque não há comércio por perto. É um bairro de casas e plantas, morno de mais um final de tarde, no meio da semana. Louise recupera a perna em uma posição de cotovelos. Finalmente alcança os olhos pedrados de seu macho em xeque. Deixa escapar um expiro denso e revela o relato saqueado:
- Foi uma história estranha. Éramos amigos, mas ele insistiu em me amar. Oferecia carona, e quando eu entrava, tocava suas obviedades, como um "Eu preciso dizer que te amo" de Cazuza, sempre nessa insuportável sugestão adolescente. E havia flores também. Flores... Flores! Imagina? Logo eu, que nem gosto de ganhar... Se ele me conhecesse bem, saberia disso. Você bem que sabe disso... Nunca te decepcionei tanto como naquela vez das orquídeas importadas. Lembra? Rs – escapou um soluço de deboche.
- Aham. Continue – impávido.
- Ele dançou a valsa de formatura comigo; aquela dança que eu tinha reservado a outro.
- Outro? Quem? – ofendido.
- Não vem ao caso – seca e abrupta.
- ...
- Ele era primo de 3º grau do Bruno, que o apresentou pra mim por acaso, num encontro frívolo em filas de supermercado [Kadir não disfarça e prende os dentes com mais força]. Moravam na mesmo bairro, inclusive, próximo àquela lojinha charmosa de flores e café. [Kadir resmunga alto e cruza os braços com a foto entre os dedos] Mas, como você sabe, o Bruno me chutou tempos depois, e ele veio com flores para curar minha dor. Mais uma vez, esse crime.
- “Bruno”... – Kadir deixa escapar no fim do suspiro forte da dor estranha, aquela que transfigura o passado num presente de penitências.
- Kadu. Ele é ótimo, mas docinho demais, saca? Ele ///
[Interrompendo] - É ótimo? Como assim ///
[Interrompendo] - Enjoa igual comer quatro quindins, sem água. Um lorde inglês, como disse minha mãe certa vez, rs – dessa vez, o soluço foi um gargalho mesmo.
- ...
- Bom, ele não teve culpa se eu não soube amá-lo direito. Meu modo de amar é duro, sabes...
- Sei. Mas ele te comeu?
- ...
(Por Emmanuel Mirdad, deste blog aqui)
* para ler ao som de *
Kadir saiu mais cedo que o ponto permitia; supôs algumas desculpas para quando o chefe estivesse mais contente e disposto em desorientar certas convenções ancestrais. Escadas abaixo, embrenhou-se no carro e sacou uma foto do final dos anos 90. Sorriam duas pessoas apenas, em um descampado laico, uma menos presente, e outra sofridamente boba. Não era ele.
Louise gostava de despojar os pés na cadeira mais próxima; largateava sua preguiça às vezes esticada, sorrindo sozinha a malícia que recheava, lupinamente, os seus automáticos de sempre. E com os celulares no silencioso, curtia os últimos minutos do precioso silêncio antes que Kadir chegasse. Havia álbuns revirados em sua gaveta, sem nenhuma pretensão em disfarçar a invasão.
Ele chegou e empunhou a primeira pergunta antes da porta fechar. A foto, meio amassada no bolso, comportava um baú de importância cujos símbolos desconhecia. E Kadir queria saber, agora.
- Quem é? – seco e rápido.
- Quem, Kadir? – invisível.
- Esse aqui – demorou um pouco pra resolver a dobra na foto que a pressa criou.
- É melhor você me perguntar qual é a história dele – lacônica.
- Ele te comeu? – sorrindo um meia boca frouxo, sorriso de lagarto.
- ...
- ...
Uma ambulância passa na quadra vizinha. O som propaga porque não há comércio por perto. É um bairro de casas e plantas, morno de mais um final de tarde, no meio da semana. Louise recupera a perna em uma posição de cotovelos. Finalmente alcança os olhos pedrados de seu macho em xeque. Deixa escapar um expiro denso e revela o relato saqueado:
- Foi uma história estranha. Éramos amigos, mas ele insistiu em me amar. Oferecia carona, e quando eu entrava, tocava suas obviedades, como um "Eu preciso dizer que te amo" de Cazuza, sempre nessa insuportável sugestão adolescente. E havia flores também. Flores... Flores! Imagina? Logo eu, que nem gosto de ganhar... Se ele me conhecesse bem, saberia disso. Você bem que sabe disso... Nunca te decepcionei tanto como naquela vez das orquídeas importadas. Lembra? Rs – escapou um soluço de deboche.
- Aham. Continue – impávido.
- Ele dançou a valsa de formatura comigo; aquela dança que eu tinha reservado a outro.
- Outro? Quem? – ofendido.
- Não vem ao caso – seca e abrupta.
- ...
- Ele era primo de 3º grau do Bruno, que o apresentou pra mim por acaso, num encontro frívolo em filas de supermercado [Kadir não disfarça e prende os dentes com mais força]. Moravam na mesmo bairro, inclusive, próximo àquela lojinha charmosa de flores e café. [Kadir resmunga alto e cruza os braços com a foto entre os dedos] Mas, como você sabe, o Bruno me chutou tempos depois, e ele veio com flores para curar minha dor. Mais uma vez, esse crime.
- “Bruno”... – Kadir deixa escapar no fim do suspiro forte da dor estranha, aquela que transfigura o passado num presente de penitências.
- Kadu. Ele é ótimo, mas docinho demais, saca? Ele ///
[Interrompendo] - É ótimo? Como assim ///
[Interrompendo] - Enjoa igual comer quatro quindins, sem água. Um lorde inglês, como disse minha mãe certa vez, rs – dessa vez, o soluço foi um gargalho mesmo.
- ...
- Bom, ele não teve culpa se eu não soube amá-lo direito. Meu modo de amar é duro, sabes...
- Sei. Mas ele te comeu?
- ...
(Por Emmanuel Mirdad, deste blog aqui)
segunda-feira, 28 de junho de 2010
A insustentável sensação de deslocamento
"Algumas coisas ferem demasiado. Um simples virar de rosto. A conversa interrompida sem nenhum gesto brusco. O silêncio que se instaura torrencial como uma tempestade de verão. A notícia de alguém querido que partiu. Tudo o que deixa o coração destronado. A saliva que não se consegue engolir. Nesses momentos, tenho a impressão que o grande abismo da existência nos abocanha com a força de mil locomotivas. É como invadir a ordem estabelecida de uma casa, minar os seus alicerces. Todo ser humano já deve ter sentido isso alguma vez. A insustentável sensação de deslocamento".
(O Ulisses no supermercado, José de Assis Freitas Filho, p. 22 - O Assis escreve para este blog aqui)
Para enxergar todas as palavras que não são ditas
"Alisou o vestido e passou os dedos pelos cabelos curtos e arregalou os olhos diante do espelho e por causa desse gesto pensou em Chapeuzinho Vermelho, para que esses olhos tão grandes, vovozinha?
Para enxergar todas as palavras que não são ditas".
(Sinfonia em Branco, Adriana Lisboa, Ed. Rocco, p. 48)
O ser humano acredita mais nos seus equívocos do que nas suas verdades
domingo, 27 de junho de 2010
Amanhã pode acontecer tudo - inclusive nada
A Natureza Das Coisas
(Composição: Accioly Neto)
Se avexe não...
Amanhã pode acontecer tudo
Inclusive nada.
Se avexe não...
A lagarta rasteja
Até o dia em que cria asas.
Se avexe não...
Que a burrinha da felicidade
Nunca se atrasa.
Se avexe não...
Amanhã ela pára
Na porta da tua casa
Se avexe não...
Toda caminhada começa
No primeiro passo
A natureza não tem pressa
Segue seu compasso
Inexoravelmente chega lá...
Se avexe não...
Observe quem vai
Subindo a ladeira
Seja princesa, seja lavadeira...
Pra ir mais alto
Vai ter que suar.
sábado, 26 de junho de 2010
Para quê, hein?
Você quer coisas contraditórias - por Isadora Wing
"Procure pensar nos motivos, dizia a mim mesma. Procure, Isadora Wing.
(...) Eu: - E você sabe que homens e mulheres jamais poderão possuir-se, uns aos outros, por completo.
Eu: - Sei.
Eu: - E você sabe que detestaria ter um homem que a possuísse por completo e usasse o seu espaço mínimo de respirar...
Eu: -Sei... mas anseio desesperadamente por isso.
Eu: - Mas se você o conseguisse, ia sentir-se presa...
Eu: -Sei.
Eu: -Você quer coisas contraditórias.
Eu: -Sei.
Eu: -Você quer liberdade e quer também proximidade.
Eu: -Sei.
Eu: -Pouquíssimas pessoas encontram isso.
Eu: -Sei".
(Medo de Voar, Erica Jong, pgs.285-286)
Cada um dá o que pode, o que é bem diferente
"Queremos tudo de um amigo. Muitas vezes desejamos ser sinceros e, no entanto, somos grosseiros. Em outras, queremos proteger mas, em vez disso, sufocamos. Ninguém dá o que tem, ou acha que tem. Cada um dá o que pode, o que é bem diferente".
(As feridas de um leitor, José Castello, Jornal O Globo, Caderno Prosa & Verso, 19/06/2010, p. 4)
quinta-feira, 24 de junho de 2010
À procura do tempo que era a promessa do dia seguinte - e um recadinho
“E ela me dizia, tão esteta, que ficara tomada disso que se chama “emoção estética”. Esse raro estado de graça que conheci lendo Proust. E, outra vez, na sala de espera da ponte aérea, lendo um poema de Álvaro de Campos, no tempo em que eu lia Fernando Pessoa. E, finalmente, no quarto livro do Quarteto, quando Darley retorna a Alexandria, que, afinal, não é senão a sua viagem à procura do tempo perdido. Neste domingo desolado, eu também faço minha viagem à procura do tempo perdido. À procura do tempo em que Luísa era a promessa do dia seguinte”.
(Luísa (Quase uma história de amor), Maria Adelaide Amaral)
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Já volto - ou o desejo é (mais) sentido na ausência
P.S.: aviso aos leitores do Divã -> adoro este espaço e desde que ele surgiu, devolvo a visita de todos que passam por aqui e possuem seus "divãs-pessoais". Uma política de boa vizinhança de moça-que-teve-educação-germânica: se a gente recebe alguém para um cafezinho, volta lá depois, com um pedaço de bolo. Contudo, ando com a vida acadêmica atribulada nas últimas semanas. Pensei em postar uma foto com a pilha de livros que preciso ler - e não há nenhum daqueles de suspirar de emoção estética. Mas não preciso justificar nada para ninguém, além de fazê-lo a mim mesma.
Essa breve introdução para explicar que continuo postando - ao menos uma vez ao dia - mas que não poderei permitir-me ter o prazer de visitar os que passam por aqui. Isso nos próximos vinte dias, creio eu. Depois disso, volto ao deleite de sempre.
Com afeto,
Vanessa
quarta-feira, 23 de junho de 2010
Atrás da máscara - Raduan Nassar
Atrás da máscara
"Nós buscamos outras realidades porque não sabemos como desfrutar da nossa; e saímos de dentro de nós mesmos pelo desejo de saber como é o nosso interior."
(Montaigne)
Raduan Nassar não suportou ser um grande escritor e desistiu da literatura para criar galinhas. Trocou a criação estética, que é complexa e desregrada, pela mecânica suave da avicultura, e parece muito satisfeito com isso, tanto que, resistindo a todos os apelos, se recusa a voltar atrás em sua decisão. Meteu-se assim em uma situação embaraçosa na qual o exterior (a figura do escritor) e o interior (o ato de escrever) se confundem, armadilha em que, de modo mais discreto, todos os escritores de alguma forma estão presos, e que não chega a configurar uma escolha, mas um destino. Raduan abandonou a ordem do verbo, que está sempre contaminada pelo vazio e pelo espanto, para retornar à ordem natural dos animais, que é mais silenciosa, mas também mais previsível. Ovos, poedeiras, rações, pequenas pestes podem ser controlados; a escrita, não.
O sucesso de seus dois primeiros livros, Lavoura arcaica e Um copo de cólera, parece ter excedido em muito aquilo que Raduan esperava de si, e, ultrapassado pela própria obra, ele tomou a decisão de recuar. O sucesso, em seu caso, tornou-se uma carga: ele é aquele que não suporta vencer e, assim que a vitória se configura, precisa fracassar para se tornar menos infeliz. Restou a sombra de algo intolerável, a literatura, que, vista sem as pompas da reputação e da fama, tem a aparência de uma emboscada. Escrever não é só seguir uma rotina, manter-se atento e cumprir as regras dos manuais.
Mas por que terá Raduan, ao tomar a decisão de abandonar a literatura, conservado para si a imagem de escritor? Por que terá resolvido ser um homem com duas sombras — uma do escritor consagrado, outra do sujeito que desistiu de ser escritor? Raduan não é um Rimbaud, que, ao resolver que a escrita não o interessava mais, virou a página de sua biografia e, trocando de máscara, foi viver como um mercenário na África. Ao contrário, mesmo desistindo da literatura, ele não deixou de se apresentar, quase obstinadamente, como um escritor militante. Raduan é, ninguém tem dúvida, um grande escritor. Por isso, a solução que deu a seu impasse chega a parecer, às vezes, mentirosa. Quem estará dizendo a verdade: o Raduan que desistiu da literatura e se tornou só um homem silencioso com suas galinhas, ou o Raduan que, mesmo sem escrever, insiste em se ver como um escritor?" (...)
(Do livro *Inventário das Sombras, de José Castello, Editora Record, Rio de Janeiro, 1999, "Atrás da Máscara", pág. 173)
* Mais uma dica de leitura imperdível. Eu leio o Castello todo sábado, no caderno de literatura do O Globo. Também fiz um curso que ele ministrou, há tempos. Inventário das Sombras é um livro demasiado especial - para mim.
"Nós buscamos outras realidades porque não sabemos como desfrutar da nossa; e saímos de dentro de nós mesmos pelo desejo de saber como é o nosso interior."
(Montaigne)
Raduan Nassar não suportou ser um grande escritor e desistiu da literatura para criar galinhas. Trocou a criação estética, que é complexa e desregrada, pela mecânica suave da avicultura, e parece muito satisfeito com isso, tanto que, resistindo a todos os apelos, se recusa a voltar atrás em sua decisão. Meteu-se assim em uma situação embaraçosa na qual o exterior (a figura do escritor) e o interior (o ato de escrever) se confundem, armadilha em que, de modo mais discreto, todos os escritores de alguma forma estão presos, e que não chega a configurar uma escolha, mas um destino. Raduan abandonou a ordem do verbo, que está sempre contaminada pelo vazio e pelo espanto, para retornar à ordem natural dos animais, que é mais silenciosa, mas também mais previsível. Ovos, poedeiras, rações, pequenas pestes podem ser controlados; a escrita, não.
O sucesso de seus dois primeiros livros, Lavoura arcaica e Um copo de cólera, parece ter excedido em muito aquilo que Raduan esperava de si, e, ultrapassado pela própria obra, ele tomou a decisão de recuar. O sucesso, em seu caso, tornou-se uma carga: ele é aquele que não suporta vencer e, assim que a vitória se configura, precisa fracassar para se tornar menos infeliz. Restou a sombra de algo intolerável, a literatura, que, vista sem as pompas da reputação e da fama, tem a aparência de uma emboscada. Escrever não é só seguir uma rotina, manter-se atento e cumprir as regras dos manuais.
Mas por que terá Raduan, ao tomar a decisão de abandonar a literatura, conservado para si a imagem de escritor? Por que terá resolvido ser um homem com duas sombras — uma do escritor consagrado, outra do sujeito que desistiu de ser escritor? Raduan não é um Rimbaud, que, ao resolver que a escrita não o interessava mais, virou a página de sua biografia e, trocando de máscara, foi viver como um mercenário na África. Ao contrário, mesmo desistindo da literatura, ele não deixou de se apresentar, quase obstinadamente, como um escritor militante. Raduan é, ninguém tem dúvida, um grande escritor. Por isso, a solução que deu a seu impasse chega a parecer, às vezes, mentirosa. Quem estará dizendo a verdade: o Raduan que desistiu da literatura e se tornou só um homem silencioso com suas galinhas, ou o Raduan que, mesmo sem escrever, insiste em se ver como um escritor?" (...)
(Do livro *Inventário das Sombras, de José Castello, Editora Record, Rio de Janeiro, 1999, "Atrás da Máscara", pág. 173)
* Mais uma dica de leitura imperdível. Eu leio o Castello todo sábado, no caderno de literatura do O Globo. Também fiz um curso que ele ministrou, há tempos. Inventário das Sombras é um livro demasiado especial - para mim.
(Es)coriações
" - Procure não se machucar.
- Não me farão mal algumas escoriações - disse Ana, pensando que há muito tempo não descia ao infernos dos sentimentos comuns dos mortais. - O que estou querendo dizer - explicou - é que isso é vital para meu trabalho e para a minha alma. Você sabe que quando estou apaixonada escrevo melhor".
(O Bruxo, Maria Adelaide Amaral)
um movimento nas dobras dos teus cabelos
"Me dê tua mão, Ana. Tantas coisas que esperam. Desse teu gesto dependem minhas atitudes, minha conduta, minhas virtudes. Tudo, Ana, tudo começa no teu amor. Ele é a semente. O teu amor para mim é o princípio do mundo. Me ajude Ana, me diga alguma coisa, me diga uma palavra, me basta um leve aceno de cabeça, um movimento nas dobras dos teus cabelos, ou na sola dos teus pés... (...) Tenho vontade de varar teus santos, teus anjinhos, de dar uma dentada no coração do teu Cristo".
(Do filme: Lavoura Arcaica, inspirado na obra de Raduan Nassar)
O tempo, o tempo e suas águas inflamáveis.
"O tempo, o tempo e suas águas inflamáveis. Esse rio largo que não cansa de correr, lento e sinuoso, ai daquele, dizia o pai, que tenta deter com as mãos o seu movimento, será consumido por suas águas. Ai daquele, aprendiz ou feiticeiro, que abre sua camisa para o confronto, há de sucumbir nas suas chamas. O tempo e suas mudanças, presente em cada sítio, em cada palmo, em cada grão, e presente também em cada instante, em cada letra dessa minha história passional, transformando a noite escura do meu retorno numa manhã cheia de luz".
(Do filme: Lavoura Arcaica, inspirado na obra de Raduan Nassar)
dominando a todos com seu violento ímpeto de vida..
"(...) dominando a todos com seu violento ímpeto de vida... (...) me atirando sem piedade numa insólita embriaguez, me pondo confesso sem antecedentes, me fazendo ver com espantosa lucidez as minhas pernas de um lado, os braços de outro, todas as minhas partes amputadas se procurando na antiga unidade do meu corpo. Que demônio mais versátil!".
(Do filme: Lavoura Arcaica, inspirado na obra de Raduan Nassar)
terça-feira, 22 de junho de 2010
Pelos seus pântanos onde talvez monstros machucados ainda vagassem, tanto tempo depois
"Ainda se escondiam nela, porém, emoções que só poderiam ser expressas com seu vocabulário antigo, seu vocabulário tosco de moça inadequada. De menina que adorava burlar proibições. E que acabara se decidindo pela fazenda em lugar da villa de papa Azzopardi. Pela sua própria vida, em lugar da vida do outro. Pelos seus próprios segredos, também. Pelo seu próprio degredo voluntário. Pelos seus pântanos onde talvez monstros machucados ainda vagassem, tanto tempo depois".
(Sinfonia em Branco, Adriana Lisboa, Ed. Rocco, p. 20, livro que comecei ontem, e, apesar de ter lido apenas um capítulo, fiquei tomada de paixão. RECOMENDO MUITO a leitura)
ao pensar que afinal acabara sobrevivendo a si mesma
"Um dia, o esquecimento. Um dia, o futuro.
Um dia, a morte. Clarice sentiu mais uma vez com as pontas dos polegares as duas cicatrizes gêmeas, uma em cada punho. E sorriu um sorriso voluntário e triste, um sorriso sem mistérios, ao pensar que afinal acabara sobrevivendo a si mesma".
(Sinfonia em Branco, Adriana Lisboa, Ed. Rocco, p. 23)
Tem que esperar muito tempo. Quanto tempo? Depende. Dias, semanas. Isso tudo?
"Ainda não está brotando, reclamou João Miguel, e Maria Inês deu de ombros e disse que você não tem mesmo paciência. Acha que é assim? Que a gente planta uma semente e que ela começa a brotar na mesma hora? Tem que esperar muito tempo.
Quanto tempo?
Depende. Dias, semanas.
Isso tudo?
Ela não respondeu. Alisou a terra com cuidado quase maternal, depois desviou os olhos para acompanhar uma borboleta que sobrevoava o pequeno espaço até a pedreira e lançava-se audaciosa no abismo".
(Sinfonia em Branco, Adriana Lisboa, Ed. Rocco, pgs. 14-15)
juros-dividendos-correção-monetária
Dentro não pode ter sol?
"Há uma necessidade cultural de chamar para se divertir um filho que lê um livro no quarto. Será que aquilo também não é diversão? Escutei muito: "Vá brincar lá fora, tem sol". Dentro não pode ter sol?
Duvido, sim, dos que não ficam um pouco em si, mergulhados, imersos, centrados, costurando as palavras com os cílios da agulha, tramando uma figura no pano de prato, uma figura que nunca terá legenda. Os pensamentos conversam quando paramos de ouví-los".
(Solidão não é prejudicial à saúde - do livro O amor esquece de começar, Carpinejar, p. 68)
Dividiu-se. Em estradas, cidades, tarde, noites.
"Eram duas. Ele, um. Amavam-no, e ele as amava. Numa: fidelidade, ternura, amor. Noutra: juventude, alegria, corpo. Dividiu-se. Em estradas, cidades, tarde, noites. Natais. Não foi feliz. Não era feliz.
Mas não pensemos que ficou só. Ele próprio sabia que jamais está só, não verdadeiramente, embora todos estejam sozinhos - como pregos na parede".
(O Saldo - do livro Nem mesmo os passarinhos tristes, Mayrant Gallo, p. 46)
segunda-feira, 21 de junho de 2010
E eu que não sabia que o amor requer vigília
minha lâmina, era meu arrepio, meu sopro, meu assédio
"Era Ana, Pedro. Era Ana minha fome, minha enfermidade. Era Ana minha loucura, era o meu respiro. Era Ana a minha lâmina, era meu arrepio, meu sopro, meu assédio. Era eu o irmão acometido, era eu o irmão exasperado, era eu o irmão de cheiro virolento, era eu que tinha na pele a gosma de tantas lesmas, a baba derramada do demo".
(Do filme: Lavoura Arcaica, inspirado na obra de Raduan Nassar)
que instante terrível é esse que marca o salto
"O tempo, o tempo, esse algoz às vezes suave, às vezes terrível demônio, absoluto, conferindo qualidade à todas as coisas. É ele ainda hoje e sempre quem decide. E por isso que me curvo cheio de medo, e erguido em suspense me perguntando qual o momento, qual o momento preciso da transposição? Que instante, que instante terrível é esse que marca o salto, que massa de vento, que fundo de espaço concorre para levar ao limite, o limite em que as coisas já desprovidas de vibração deixam de ser simplesmente vida na corrente do dia a dia, para ser vida dos subterrâneos da memória".
(Do filme: Lavoura Arcaica, inspirado na obra de Raduan Nassar)
Estamos indo sempre para casa
sábado, 19 de junho de 2010
não é o bastante
"Ela está na cidade e quer vê-lo, mas ele não pode. A vida, em desordem, recorta os dias e monta os álbuns. A vida - com suas tramas imutáveis.
Ela está na cidade e quer vê-lo... Ela está na cidade... Mas desejarem-se não é o bastante.
Ela está na cidade, e ele - encerrado na torre".
(Torre - do livro Nem mesmo os passarinhos tristes, Mayrant Gallo, p. 39)
Caminho para o céu - que não existe, nem o caminho
"Quando bebemos, ficamos bêbados. Quando ficamos bêbados, dormimos. Quando dormimos não cometemos pecados. Quando não cometemos pecados vamos para o céu... Portanto vamos ficar bêbados para ir ao céu!".
(Brian O´Rourke)
P.S.: quem me conhece, sabe que eu só bebo água sem gás. Nem refrigerante eu gosto. Não sou da turma dos chatos e politicamente corretos, mas outro dia, em uma conversa, fui lembrada que algumas pessoas levam mesmo a sério o que leem por aí. E como eu sei que tenho muitos leitores adolescentes - fase em que toda identificação é exagerada - achei importante fazer essa ressalva. Achei essa frase em um livro chamado Hic!stórias - os maiores porres da história da humanidade, do Ulisses Tavares.
sofrendo bastante, vivendo e sangrando e amando, Caio teria vivência para escrever
"A coisa não deu certo, claro. Emediato ficou constrangido, Caio decepcionado. Sua mania de se apaixonar por homens obviamente heterossexuais talvez fosse uma forma de defesa, de auto-sabotagem, de garantir desde o começo que não daria certo, para que assim sua liberdade e individualidade fossem mantidas intactas. Ah, e é claro: sofrendo bastante, vivendo e sangrando e amando, Caio teria vivência para escrever. Teria assunto. O mito do artista sofredor parecia calar fundo no coração do escritor".
(Caio Fernando Abreu - inventário de um escritor irremediável, Jeanne Callegari, pgs. 83-84)
eu sou o outro
"(...) Por isso um poeta dizia "eu sou o outro" intuindo que éramos, como Frankestein, feitos com o que ficou dessas imitações. Psicose de Hitchcock se refere a isso. O pobre rapaz não suportou a morte de sua mãe e se transformou nela para negar sua ausência e morte. O EU se transforma sobre as identificações e por isso, antes de sermos o que somos, todos fizemos como Antony Perkins, ou seja, perdemos a mãe e ocupamos seu lugar".
(Amores Freudianos, Alberto Goldin, p. 76)
Medo de ser roubado e pedir de volta
"Você tem medo de se apaixonar e não prever o que poderá sumir, o que poderá desaparecer. Medo de se roubar para dar a ele, de ser roubada e pedir de volta. Medo de que ele seja um canalha, medo de que seja um poeta, medo de que seja amoroso, medo de que seja pilantra, incerta do que realmente quer - talvez todos em um único homem, todos um pouco por dia. Medo do imprevisível que foi planejado. Medo de que ele morda os lábios e prove o seu sangue".
(Medo de se apaixonar - do livro O amor esquece de começar, Carpinejar, p. 31. Porque o primeiro livro do Carpinejar que a gente ganha da melhor amiga, é inesquecível)
sexta-feira, 18 de junho de 2010
Versões da "verdade"
Sobre corações
quinta-feira, 17 de junho de 2010
Os olhos falam demais
grande desilusão de tudo o mais
quarta-feira, 16 de junho de 2010
ingerência absurda na dor que ela desejava intacta
"A rejeição apresenta-se às mulheres como um dos rostos da glória. Naquela noite, Ricardo Luz telefonou três vezes a Cláudia, que por três vezes desligou o telefone sem dizer uma palavra. O sofrimento dele incomodava-a, era uma ingerência absurda na dor que ela desejava intacta".
(A instrução dos amantes, Inês Pedrosa, p. 103)
terça-feira, 15 de junho de 2010
Seus personagens se apavoram, surtam, adoecem, afundam, destroem-se.
"Os relatos de Caio Fernando Abreu tratam da desilusão, do desespero, do medo, da asfixia, da impotência. Seus personagens se apavoram, surtam, adoecem, afundam, destroem-se. No entanto, Caio nos leva a ver - e como isso é doloroso, mas sábio! - que é apenas isso o que temos. Viver é sofrer da vida. Mas é também, como na literatura de Caio Fernando Abreu, revirar esse sofrimento e dele tirar a grandeza de existir".
(José Castello no prefácio de Pedras de Calcutá, Caio Fernando Abreu)
Imagem de Imre Amos, Weeping Angel.
Coragem
segunda-feira, 14 de junho de 2010
El secreto de sus ojos
"- Me diga o que achou.
- Bom, é um romance, não é? E num romance não é preciso dizer a verdade. Nem sempre é verossímil...
- Sim... Não, não... o que não é verossímil?
- Ah, Benjamin! Nessa parte, quando o cara vai para Jujuy , ele chorando, como se fosse uma perda! E ela correndo pela plataforma, como se estivesse perdendo o amor de sua vida... tocando-se as mãos através do vidro, como se fossem uma única pessoa! Ela chorando, como se soubesse que lhe esperava um destino medíocre, sem amor... quase caindo sobre os trilhos, como se quisesse gritar-lhe um amor que nunca tinha confessado!
- Sim, mas foi assim... Ou não foi assim?
- E se foi assim... por que não me levou com você? Seu lerdo!
(...)
- E como vai continuar a história?
- (...) e que quando voltou a encontrou casada e com dois filhos. Devo escrever isso?
- Sim, ou então que ele encontrou casado, com uma bonequinha de Jujuy, bonita, aristocrática.
- Ela era uma moça divina. Não foi sua culpa, se não consegui amá-la".
(Do filme: El secreto de sus ojos)
domingo, 13 de junho de 2010
Como uma maçã
“Ah, eu mordo, mordo a vida como uma maçã suculenta. Brinco com ela feito um peixe e sou feliz. E o que é ser feliz? É seguir sempre em frente. Há algo melhor a ser feito do que aquilo que já fiz, e impulsionada pela ilusão favorável do progresso, buscarei progredir, fincarei as esporas em meu flanco, mais e mais - até aprender. Sempre”.
(Sylvia Plath)
sábado, 12 de junho de 2010
O amor não poupa ninguém
"Raul era um homem, um artista para mais; uma natureza sensível portanto. O que lhe sucedera, era fatal. O amor não poupa ninguém. As melhores intenções de o desprezar são inúteis: alfim, lá faz ele sentir as suas influências. No romance da vida de um homem - como em todos os romances - aparece sempre uma mulher, aparece sempre o amor".
(Loucura, Mário de Sá-Carneiro, p. 27)
Olhos de Clarice
Ora, ora, ora
"Raul era dotado de um bizarro caráter: ora alegre, ora triste; ora falador - sem poder estar um minuto calado - ora conservando-se longo tempo silencioso, imerso em profunda meditação. Por coisas insignificantes, assaltavam-no às vezes terríveis cóleras: lembro-me de que um dia, só por não querer adotar uma opinião sua, me atirou com um insulto obsceno, acompanhado de um pesado tinteiro de vidro que, se me acertasse, podia muito bem dar cabo de mim. Mas as suas cóleras logo abrandavam; a chorar, pedia perdão. Eu perdoava-lhe sempre..."
(Loucura, Mário de Sá-Carneiro)
sexta-feira, 11 de junho de 2010
Antonio Quinet - diferença entre psiquiatria, psicologia e psicanálise
Este post é para meia dúzia de leitores da área psi. A mensagem abaixo não pode ser lida ao pé da letra, para não virar caricatura.
"Outro dia uma pessoa que não entende nada de psicanálise veio me perguntar a diferença entre psiquiatria, psicologia e psicanálise. Respondi assim:
Quando você chega no psiquiatra, ele te dá remédio.
Quando você chega no psicólogo, ele te dá conselho.
Quando você chega no psicanalista, ele não te dá nada"
(Antonio Quinet, na aula de Teoria dos discursos de J. Lacan, 11-06-10)
Banalidade feliz
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