quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Porque o excesso de consciência é como o excesso de luz

"É que o adolescente não é um poeta, é uma vítima da poesia. A lógica com que procurava salvar do naufrágio o meu passado levou-me ao limite extremo do abismo lógico. Singular é que o presente só me interessava pela sua possibilidade de converter-se em passado, e assim, aparentemente, o exercício de viver só poderia ser para mim um cansativo comércio com a morte. Perdendo o minuto que passa, podia preservá-lo, recolhê-lo entre minhas lembranças, e só então aprender a sua fulgurante autenticidade. Confesso que mesmo o futuro, o que ainda não se transfigurou em saudade, pesava-me como se fosse vida desperdiçada. (...) Porque o excesso de consciência é como o excesso de luz; o fulgor obsessivo do presente fatiga alguns espíritos. Os objetos que se colocam em meu ângulo de visão, por simples e familiares que sejam, me obrigam a um excesso de concentração mais do que fisicamente doloroso. É como se estivesse no teatro, assistindo a uma peça conhecida, justamente no momento em que nos crispamos para ver o personagem praticar o seu irreparável erro. (...) O passado é o espaço de cada um. O que aconteceu é tarefa já cumprida, vida que se obteve de percepções ilusórias, reino tranqüilo dos emotivos. Eis por que estremeço todas as manhãs, quando o mundo se impõe a mim outra vez. No decorrer de um dia há ciladas suficientes para que o passado de um homem se transforme com violência. Preciso viver com atenção, escolher os meus passos, trocar este gesto por aquele, dizer esta e não aquela palavras, silenciar, ver, sentir para não comprometer o que vou inventando para a memória. Admito no entanto que às vezes o presente já tenha um suavidade de lembrança."

(Paulo Mendes Campos in: O amor acaba - crônicas líricas e existenciais. Crônica: O reino das lembranças. Ed. Civilização Brasileira, p. 223-224)

2 comentários:

  1. Grande Paulinho! Conseguia em poucas palavras, como um bom cronista, alcançar uma profundidade incrível.

    Aqui, tudo tem como centro a comparação de consciência e luz. Outras conseqüências desta comparação:

    Ambas nos iluminam, mas em excesso nos cegam. A consciência excessiva faz com que o mistério, o imprevisível, o oculto, até o sombrio, deixem de existir na nossa vida. Aí a gente se congela numa moldura do imaginário, em ter um mais-além para alimentar a criatividade, a poesia, o sonho e o amor-paixão.

    ResponderExcluir
  2. Para complementar o excesso de consciência, uma frase, que acho que foi de Nietzsche: "Nada tão previsível quanto a estupidez".

    ResponderExcluir

So if you have something to say, say it to me now