quinta-feira, 14 de julho de 2011

Não é indispensável que aquele que bebe abdique da razão, mas o amante que conserva a sua não obedece inteiramente ao deus do amor

Anna Karenina
"Os cínicos e os moralistas concordam em colocar a volúpia do amor entre os prazeres ditos grosseiros, como o prazer de comer e beber, declarando-a contudo, menos indispensável do que aqueles, visto que eles podem perfeitamente prescindir dela. Do moralista tudo se espera, mas espanto-me que o cínico se tenha enganado. Admitamos que uns e outros receiem seus próprios demônios, seja porque lhes resistam, seja porque se lhes entreguem, esforçando-se por aviltar o prazer a fim de lhe tirar o poder quase terrível sob o qual sucumbem, e diminuir o estranho mistério no qual se sentem perdidos. Acreditaria nessa associação do amor à alegrias puramente físicas (supondo-se que tais alegrias existam) no dia em que visse um gastrônomo soluçar de prazer diante do seu prato favorito, tal como o amante sobre o ombro amado. De todos os jogos, o do amor é o único capaz de transtornar a alma e, ao mesmo tempo, o único no qual o jogador abandona-se necessariamente ao delírio do corpo. Não é indispensável que aquele que bebe abdique da razão, mas o amante que conserva a sua não obedece inteiramente ao deus do amor. Tanto a abstinência quanto o excesso não engajam senão o homem só. Salvo no caso de Diógenes, cujas limitações e caráter de racional pessimista definem-se por si mesmos, toda experiência sensual nos coloca em face do Outro, acarretando-nos as exigências e as servidões da escolha. Não conheço, fora do amor, outra situação em que o homem deva decidir-se por motivos mais simples e mais inelutáveis. No amor, o objeto escolhido deve valer exatamente seu peso bruto em prazer, e é ainda no amor que o amante da verdade tem maiores probabilidades de julgar a nudez da criatura. A partir do desnudamento total, comparável ao da morte, de uma humildade que ultrapassa a da derrota e a da prece, maravilho-me ao ver renovar-se, cada vez, a complexidade das recusas, das responsabilidades, das promessas, das pobres confissões, das frágeis mentiras, dos compromissos apaixonados entre nosso prazer e o prazer do Outro, tantos laços impossíveis de se romper e tão depressa rompidos! Esse jogo cheio de mistérios, que vai do amor de um corpo ao amor de uma pessoa, pareceu-me belo o bastante para consagrar-lhe uma parte de minha vida. As palavras enganam, especialmente as do prazer, que comportam as mais contraditórias realidades, desde as noções de aconchego, doçura e intimidade dos corpos, até as da violência, da agonia e do grito. A pequena frase obscena de Posidônio sobre o atrito de duas parcelas de carne, que te vi copiar nos teus cadernos escolares com aplicação de menino ajuizado, é incapaz de definir o fenômeno do amor, assim como a corda que o dedo faz vibrar não pode explicar o milagre dos sons. Essa frase insulta menos a volúpia do que a própria carne, esse instrumento de músculos, sangue e epiderme, essa nuvem vermelha de que a alma é o relâmpago."

(Marguerite Yourcenar in Memórias de Adriano. P. 20-21. Ed. Nova Fronteira)

Surrupiado daqui. 

Um comentário:

  1. Sim, o amor é um milagre e milagres não se explicam.

    Beijos, Vanessa!

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