segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Sobre a exposição Cuide de você


Transformando um pé na bunda em arte


“Recebi uma carta de rompimento.

E não soube respondê-la.

Era como se ela não me fosse destinada.

Ela terminou com as seguintes palavras: “cuide de você”.

Levei essa recomendação ao pé da letra.

Convidei 107 mulheres, escolhidas de acordo com a profissão, para interpretar a carta.

Analisá-la, comentá-la, dançá-la, cantá-la. Esgotá-la.

Entendê-la em meu lugar. Responder por mim.

Era uma maneira de ganhar tempo antes de romper.

Uma maneira de cuidar de mim”.

São com essas palavras que a artista plástica e escritora francesa Sophie Calle justifica sua exposição “Cuide de você”. Após levar um fora por e-mail do também escritor – e sedutor – Grégoire Bouillier, não sabendo ser aquele um adeus definitivo, ou se havia ainda uma porta aberta, e não tendo coragem de responder a mensagem, ela decidiu, três dias depois, mostrar a carta rompimento para 107 mulheres. Das mais diferentes profissões, para interpretar o texto: psicanalista, juíza, escritora, jornalista, atriz, cantora, consultora de etiqueta, delegada, jogadora de xadrez... O resultado incrível desse projeto esteve no SESC Pompéia, em São Paulo e de 22 de setembro a 22 de novembro estará no Museu de Arte Moderna da Bahia, em Salvador.

“Se ele tivesse voltado, eu teria preferido Grégoire”, disse Sophie na FLIP 209. Mas ele não voltou. E a exposição está fazendo o maior sucesso. Ainda na FLIP, Grégoire, no primeiro encontro oficial com Sophie, lembra aos literatos que não é proibido deixar alguém, e que todos têm o direito de amar e deixar de amar. Tudo bem, Grégoire, você teve todo o direito, ok?

Em junho de 2009, o escritor explicou à revista Marie Claire que a fidelidade exigida por Sophie deveria ser algo oferecida de livre e espontânea vontade. Não pode ser pedida, nem exigida. “Tem que partir de você, não do outro. No meu caso, ela se tornou um fardo quando passou a ser uma obrigação que a Sophie impunha, não uma vontade natural”, explica Bouillier. No final da entrevista, ele alfineta a ex. “Gostei muito de Sophie, mas, na verdade, tive outros relacionamentos que foram até mais importantes na minha vida”. No final desse escrito está o tal e-mail na íntegra.

Voltemos para a exposição. Algumas das interpretações se destacam. A subeditora-chefe, Sabrina Champenois escreveu: “O inferno, sem os outros. Amante rompe e afirma que motivo é respeito pelo pacto inicial. Honestidade ou covardia?”

A juíza X., que não quis se identificar, pergunta-se: “O que é um contrato? É um acordo voluntário entre duas pessoas, cujo consentimento deve ser livre e ciente, para criar certa situação e organizar de forma precisa as regras segundo as quais funciona”.

Françoise Gorog, psiquiatra, usa um lacanês só compreensível para psicanalistas – vide a foto.

A escritora de cartas, Rafaèle Decarpigny é enfática: “(...) Eu poderia expressar incompreensão, tristeza, raiva. Eu poderia lhe dizer que apenas o fato de responder essa mensagem seria demonstrar interesse demais. Eu poderia lhe dizer que poderia ter preferido uma “boa conversa aberta” (?) a essa prolixidade na qual você mergulha, como que para esconder a sua evasão e as “razões” para ela”.

A Condessa Aliette Eischer Von Toggenburg, consultora de etiqueta e protocolo, desdenha o e-mail, do início ao fim. Quando Grégoire escreve que gostaria que as coisas tivessem tomado um rumo diferente, ela dispara: “Sim, claro, culpe a sua mãe, o padre, o presidente, a Madonna, ter lido Don Juan, os tumultos na periferia e sei lá mais o quê”.

Para concluir, a interpretação da criminologista Michèle Agrapart-Delmas. Para ela, o autor do e-mail é incapaz de lidar com seus conflitos, sua escrita é evasiva, e ele quer projetar a imagem de uma pessoa bondosa que não sabe repelir. É somente a angústia, pela qual ele não pode ser responsabilizado, que o leva a escrever essa pequena obra de manipulação e dominação, além do autor ser orgulhoso, narcisista e egoísta. “Não há dúvidas de que a mulher para quem ele escreve o lisonjeava, mas ele não dá a mínima para seu sofrimento, para a frustração produzida pela dor que ele causa”.

São muitas as outras leituras do e-mail, outras tão instigantes quanto às citadas aqui. Vale muito conferir a exposição. Dói um pouco, também. Você já levou um fora por e-mail? Sim? Então faça como a Sophie e sublime. Sublime bem. É a melhor saída. Ah. Sophie disse que a exposição foi uma maneira de ganhar tempo antes de romper com Grégoire. Ela não havia entendido que, embora unilateral, o rompimento já havia ocorrido?

O e-mail em que Grégoire Bouillier rompe com Sophie Calle

"Há algum tempo, venho querendo responder seu último e-mail. Na verdade, preferia dizer o que tenho a dizer de viva voz. No entanto, vou fazê-lo por escrito.

Você já pôde notar que não estou bem ultimamente. É como se não me reconhecesse em minha própria existência. Sinto uma espécie de angústia terrível, contra a qual não consigo fazer grande coisa, exceto seguir adiante para tentar superá-la. Quando nos conhecemos, você impôs uma condição: não ser a 'quarta'. Eu mantive o meu compromisso: há meses deixei de ver as 'outras', não achando logicamente um meio de vê-las sem transformar você em uma delas.

Pensei que isso bastasse. Pensei que amar você e que o seu amor — o mais benéfico que jamais tive — seriam suficientes. Pensei que assim aquietaria a angústia que me faz sempre querer buscar novos horizontes e me impede de ser tranquilo ou simplesmente feliz e 'generoso'. Pensei que a escrita seria um remédio, que meu desassossego se dissolveria nela para encontrar você. Mas não. Estou pior ainda; não tenho condições nem sequer de lhe explicar o estado em que mergulhei. Então, nesta semana, comecei a procurar as 'outras'. Sei bem o que isso significa para mim e em que tipo de ciclo estou entrando. Nunca menti para você e não é agora que vou começar.

Houve uma outra regra que você impôs no início de nossa história: no dia em que deixássemos de ser amantes, seria inconcebível para você me ver novamente. Você sabe que essa imposição me parece desastrosa, injusta (já que você ainda vê B., R.,…) e compreensível (obviamente…). Com isso, jamais poderia me tornar seu amigo. Você pode, então, avaliar a importância de minha decisão, uma vez que estou disposto a me curvar diante de sua vontade, ainda que deixar de ver você e de falar com você, de apreender o seu olhar sobre os seres e a doçura com que você me trata sejam coisas das quais sentirei uma saudade infinita. Aconteça o que acontecer, saiba que nunca deixarei de amar você do modo que sempre amei desde que nos conhecemos, e esse amor se estenderá em mim e, tenho certeza, jamais morrerá.

Mas hoje seria a pior das farsas manter uma situação que, você sabe tão bem quanto eu, se tornou irremediável, mesmo com todo o amor que sentimos um pelo outro. E é justamente esse amor que me obriga a ser honesto com você mais uma vez, como última prova do que houve entre nós e que permanecerá único.

Gostaria que as coisas tivessem tomado um rumo diferente.

Cuide-se."

Grégoire



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