quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Fragmento do leitor 48

Anna Ancher
Explicação

Meu verso é minha consolação.
Meu verso é minha cachaça. Todo mundo tem sua cachaça.
Para beber, copo de cristal, canequinha de folha-de-flandres,
folha de taioba, pouco importa: tudo serve.

Para louvar a Deus como para aliviar o peito,
queixar o desprezo da morena, cantar minha vida e trabalhos
é que faço meu verso. E meu verso me agrada.

Meu verso me agrada sempre...
Ele às vezes tem o ar sem-vergonha de quem vai dar uma

[cambalhota

mas não é para o público, é para mim mesmo essa cambalhota.
Eu bem me entendo.
Não sou alegre. Sou até muito triste.
A culpa é da sombra das bananeiras de meu pais, esta sombra mole,

[preguiçosa.


Há dias em que ando na rua de olhos baixos
para que ninguém desconfie, ninguém perceba
que passei a noite inteira chorando.
Estou no cinema vendo fita de Hoot Gibson,
de repente ouço a voz de uma viola...
saio desanimado.
Ah, ser filho de fazendeiro!
À beira do São Francisco, do Paraíba ou de qualquer córrego

[vagabundo,
é sempre a mesma sen-si-bi-li-da-de.


E a gente viajando na pátria sente saudades da pátria.
Aquela casa de nove andares comerciais
é muito interessante.
A casa colonial da fazenda também era...
No elevador penso na roça,
na roça penso no elevador.

Quem me fez assim foi minha gente e minha terra
e eu gosto bem de ter nascido com essa tara.
Para mim, de todas as burrices, a maior é suspirar pela Europa.
A Europa é uma cidade muito velha onde só fazem caso de dinheiro
e tem umas atrizes de pernas adjetivas que passam a perna na gente.
O francês, o italiano, o judeu falam uma língua de farrapos.
Aqui ao menos a gente sabe que tudo é uma canalha só,
lê o seu jornal, mete a língua no governo,
queixa-se da vida (a vida está tão cara)
e no fim dá certo.

Se meu verso não deu certo, foi seu ouvido que entortou.
Eu não disse ao senhor que não sou senão poeta?

Carlos Drummond de Andrade, do livro: Alguma Poesia / Antologia Nova Reunião, 23 livros de poesia. Ed. Nova Reunião. Pág. 47)

Enviado pela leitora Jenifer Carmo, do blog http://consideracaodopoema.blogspot.com/

Para participar:
1) O fragmento (um trecho que não seja imenso) pode ser de livro ou filme (diálogo). Enviem seu fragmento favorito para meu e-mail (vanessa.sza@bol.com.br) e o título do e-mail
deve ser: Qual seu fragmento favorito? 
2) É necessário que o autor/roteirista/diretor/poeta seja publicado/conhecido, para citarmos a fonte corretamente. Autor, título do livro. Com editora e página, melhor ainda. Assim, o leitor pode ir atrás da obra.
3) O nome do leitor e o link do seu blog vão constar aqui, para a divulgação dos mesmos. Quem é leitor mas não tem blog também pode participar. No final de janeiro o fragmento que mais me tocou vai ganhar um DVD + um livro.

3 comentários:

  1. ... é sempre a mesma sen-si-bi-li-da-de.

    ficou tão lindo, minha Querida.
    gostei muito da surpresa.

    um beijo de saudade e poesia.

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  2. Me enfeito de versos!
    O Drummond é um génio.
    Seguindo-a de volta, beijão Vanessa!

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  3. Mais brasileiro impossível! Orgulho, sempre.

    Beijos.

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