"E, afinal, como não saber? Como saber se você chegou até aqui, esta carta nas mãos, se você teve coragem, sim, porque é preciso coragem, é preciso coragem para suportar toda essa espera e receber todo esse amor, mesmo que não passe de um engano. E todas estas palavras que são sempre outra coisa, como saber?
A escrita é cheia de mal-entendidos, como a fala. Não como o olhar, que é sempre revelador, nada mais revelador que o olhar, um olhar distante em meio a um amor tão grande, o olhar perverso ao declarar-se inocente, ou um olhar pegajoso quando o corpo vai embora e as palavras simples da despedida, qualquer coisas como tchau ou talvez até logo.
Haverá alguma forma de dizer as coisas sem que elas nos escapem, haverá alguma forma de controlar? Eu poderia, por exemplo, a cada frase escrever uma nota de pé de página, uma explicação a cada frase, te dizendo a fonte, de onde vem tudo isso, a dor, a dúvida, a tal suavidade, te dizendo que, onde disse mesa, era na realidade quarto e, onde disse rua, era na realidade cama, mas não qualquer cama, nota de pé de página, não qualquer cama, a minha cama e os lençóis, se lembra? Serão os teus e os meus lençóis os mesmos? E, para assegurar-me, mais uma nota, aquele dia, aquela noite, a última, lembra? E ainda assim a dúvida, serão os nossos dias os mesmos dias?, e até, será você, teria sido realmente você?,
a memória costuma enganar, a memória e o tempo e o desejo de que as coisas sejam do jeito que achamos que foram, será que era você, aquele dia, aquela noite, e os lençóis?
(Flores Azuis, Carola Saavedra, p. 75-76, Ed. Companhia das Letras)