segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Esse mar no olhar (conto) - por Vanessa Souza

Dominava quatro idiomas com fluência. Passara a infância e a adolescência frequentando todas as escolas de etiqueta que a mãe a matriculava – e sabia aquelas regras que estavam em desuso hoje. Vestia-se com elegância e discrição. Tinha olhos azuis curiosos, sempre atentos ao interlocutor – uma curiosidade branda, nunca atrevida, insolente.
Trabalhava alguns meses numa grande empresa. Era assistente da secretária do diretor presidente. Logo ficaria no lugar da secretária, pois a senhora estava quase se aposentando. Catarina era uma funcionária exemplar. E ainda havia conquistado a simpatia de todos, em pouco tempo: dos sócios até a moça que servia o cafezinho. Era exímia no trabalho: nunca se atrasara, nunca ficara doente, nunca pediu para sair mais cedo nem para ir ao dentista.
Catarina cometeu apenas uma falha no trabalho, e essa era grave: apaixonou-se pelo diretor presidente. Duas falhas: sentia que o amava – e ele dizia que também a amava, porém Catarina não sabia que os homens falavam qualquer coisa nos momentos mais ardorosos. Havia ainda um terceiro equívoco: tornou-se amante dele. Não que ela considerava um equívoco ser amante do chefe. O equívoco era sofrer mais do que amar, ter muito menos do que necessitava - os quadros da realidade e da fantasia tinham um desnível abissal. Michele (italiano, a quem todos faziam graça por ter um nome feminino no Brasil) não conseguia reservar muito tempo na sua agenda para Catarina. Além da esposa, havia as filhas. Valorizava a família e bradava isso com orgulho. Desejava ser o exemplo de pai que não teve. No entanto, também desejava urgentemente a moça.
Catarina foi o único lapso de Michele, sua mácula na regrada vida de homem-trabalhador-pai-de-família. Não resistiu aos encantos da jovem esguia de cabelos impecáveis (sentia sempre um imenso desejo de deixar-lhe os cabelos em desalinho), perfume de rosas (“É Dior”, um dia ela disse a ele), fala ponderada e pausada. Michele desprezava as italianas estridentes (tal como fora suas tias e avós), e Catarina era por demais suave. Ela tinha o ritmo de bossa nova, lembrava um dia ensolarado e tranquilo. Um mar no olhar, um banquinho, um violão. Para Michele, ela também era uma imperatriz de tez de mármore, destoando nos tristes trópicos de Lévi-Strauss - devaneava.
Vieram viagens, compromissos fora da cidade. A moça dos olhos de mar nunca reclamou por não tomarem café da manhã juntos no hotel, ou por ter de ficar acompanhada de um livro na cama, aguardando por ele enquanto fazia negócios no jantar. Catarina temia ser estridente, como aquelas mulheres que ele dizia detestar. Chorava um pouquinho no travesseiro, mas logo retocava a maquiagem. Ela desejava ser a mulher que não daria trabalho, ela havia prometido a ele. Ela levava as promessas a sério. Nos fins de semana, sentia um vazio imenso. Queria que a segunda-feira chegasse logo – mesmo que só conseguisse uns beijos furtivos de Michele, isso já tornaria seu dia ensolarado, naquela cidade cinza onde sempre chovia.
Sexta-feira, fim de tarde, Michele é chamado para uma reunião com os sócios da empresa. Catarina pega seu pequeno laptop para dirigir-se ao local do encontro. É barrada antes de sair da sala, pela secretária do amante.
- Você não pode participar da reunião - lança-lhe um olhar inquisidor.
- Não entendo... Por qual motivo?
- É apenas para o senhor Michele e os sócios.
- Ah...
- E a esposa dele é um dos sócios – acrescentou, dando ênfase às palavras esposa e dele.
Catarina sente vertigem e senta. Tenta recompor-se, olha o relógio de pulso dourado.
- Tudo bem, já é hora de ir mesmo. Vou para casa – queria sair correndo daquele lugar, rápido.
- Catarina, ouça – a mulher pronuncia de forma professoral, como se uma grande lição estivesse por vir – vou te ensinar uma coisa... Você é bonita e competente. Mas amantes, querida, são objetos a serem facilmente descartados. Não faz muita diferença quão bela e inteligente você é. Nem o fato de ter visitado mais museus ou lido mais livros do que a maioria das meninas da sua idade. Será a mulher dos bastidores. Sempre será, até ele se cansar. A esposa e as filhas são aquelas que posam no retrato da mesa.
Catarina sentiu-se golpeada no estômago com as palavras-luvas-de-boxe. Pegou sua bolsa Birkin preta com a máxima dignidade que conseguiu e desejou bom fim de semana para a portadora das más notícias, antes de sair. Realista demais, cruel demais. Foi desejando bom final de semana para todos que encontrou até sair do prédio, com seu sorriso congelado de boneca Barbie. Respirou fundo, engoliu o pranto, entrou na confeitaria elegante da esquina e pediu uma fatia de torta de brigadeiro com calda extra de chocolate. Dá a primeira garfada com certa violência e pensa:
- Amanhã, sem falta, procuro outro emprego.

Por Vanessa Souza

Rio, 05 de fevereiro de 2012.

22 comentários:

  1. Sua torta de brigadeiro
    não é muito diferente do meu copo de uísque...

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  2. Que delícia de leitura, dona Vanessa.
    O despertar de Catarina.

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  3. A moça é jovem e tem seus predicados... não será difícil encontrar trabalho.
    :)

    Sabe que mais? A sua escrita é como a torta de brigadeiro, uma delícia! Posso repetir?

    :)

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  4. Perfeito. E com todos esses predicados, não tardará a encontrar. ;)

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  5. Enfim palavras suas... rsrsrs amei...

    Acho que Catarine, pelo menos pra mim, é muito mais cativante que a Capitu do bentinho... rsrsrs...

    Abraços e Parabéns

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  6. Alanis escreveu o quanto é irônico ver o cara perfeito pra vc e logo após, ver a esposa linda dele ao lado.
    Isso é chegar tarde demais.
    Ou não, talvez seja o momento mais certo.
    A questão é: O amor não se assina. Não fica no papel. Adorei tia, perfeito.

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  7. "O equívoco era sofrer mais do que amar, ter muito menos do que necessitava - os quadros da realidade e da fantasia tinham um desnível abissal..." Adorei!!!

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  8. Que coincidência [a parte do emprego, não da amante].

    Amanhã procuro outro amor.

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  9. Foi a melhor coisa que já li sua, mana.

    Continue falando diretamente aos leitores.

    Você é única.

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  10. Adorei, coisa boa de ler, riqueza de detalhes... fiquei encantada =)

    Beijo e boa semana!

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  11. Muito bom o canto, Vanessa. Sutil e tenso ao mesmo tempo. E encontra facilmente similares reais.

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  12. Concordo... uma delícia de ler!!!

    ... Espero que tenha sequência... Muito embora seja um conto, nada impede um romance...


    Beijos =)

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  13. Em vez de torta, "e eu corri para o violão num lamento, e a manhã nasceu azul, como é bom poder tocar um instrumento".

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  14. Ah, e o sujeito nem pra falar que a esposa era sócia, brincadeira! Por isso que eu digo que as duas frases que não podem faltar no vocabulário de qualquer mulher, pra usar o que fala a garotada, são "vaza!" e "fui!".

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  15. Amanhã outro emprego, urgente! È, é !

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  16. São duras as palavras, mas são verdadeiras.
    Gostei demais do conto. Bjos achocolatados

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  17. É incrível. Não sou mulher, mas já passei por algo muito parecido, e me identifiquei com a personagem. Relacionava-me com uma moça comprometida e era isso mesmo: qualquer beijinho em todo um dia era motivo da mais extrema felicidade. Acho que só quem passa por algo semelhante sabe como é.

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