Ninguém é tão presente pra nós quanto aqueles que nos faltam, eu já me dera conta.
Marcelo Backes in: A casa cai. Companhia das Letras.
segunda-feira, 19 de dezembro de 2016
Preso-livre ou livre-preso
Imre, onde você estiver, preso-livre ou livre-preso, na rua, na prisão, no quarto de outra mulher, numa casa abandonada no meio de alguma estrada, na Áustria, para onde você não fugiria, porque não suporta nem pronunciar a palavra fuga (que não precisa ser ruim, porque fugir é o lugar do homem e até ficar tantas vezes é fugir), porque para você as palavras sempre querem dizer só uma coisa e você não percebe que elas querem dizer muitas - me ouça, do jeito que você conseguir: com as mãos, com os olhos, com os dedos. A palavra que eu te disse quando não conseguia decidir se vinha ou não para cá foi szia, aquela mesma que eu sempre falava e você fingia que ficava conspícuo mas eu percebia que você estava rindo disfarçando, do mesmo jeito que você ria quando eu te beijava nos dedos, no nariz, nos lóbulos, nos fios dos cabelos, no osso ilíaco e você ficava envergonhado mas também feliz. Essa palavra significa tanto "oi" como "tchau". Eu disse szia porque, de uma forma que nem eu sabia muito bem qual era, queria que você me ajudasse a decidir. Mas você não entendeu daquela vez e nem entende agora; você decidiu por mim que aquilo era "tchau" e praticamente me expulsou; resolveu no meu lugar... (...) Me ouça, onde quer que você esteja, (...) que, se um dia escrevessem alguma coisa, seria: "Dessa vez eu não me atrasei", porque você se atrasava para tudo e eu nunca; foi por isso que eu disse szia. Não podia me atrasar ao decidir se ficava ou ia embora, depois que eles chegaram e eu vi que você iria ficar até ser preso-livre...
Noemi Jaffe in: Írisz: As Orquídeas (Cia. das Letras).
www.vemcaluisa.blogspot.com.br
Noemi Jaffe in: Írisz: As Orquídeas (Cia. das Letras).
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Do significado
Mas as palavras carregam coisas que ficam além do que elas dizem, num lugar onde está o que elas querem dizer. Eu sinto como se elas guardassem uma origem perdida. Então quero, desse jeito teimoso que você, Martim e todos recriminam, criar um vínculo entre aquilo que a palavra foi um dia e o significado de agora. Parece que, desse jeito, as palavras e as coisas voltam a ter algum sentido maior. (...) me faz pensar em outras palavras e frases vazias que nós dissemos um para o outro, como: "Não concordo"; "Você não me compreende"; "Nós realmente não vivemos no mesmo mundo". Essas palavras não dizem nada e só substituem aquilo que realmente gostariam de dizer, que é: "Por favor, fique imediatamente já comigo para sempre e não se meta a fazer o que você acha que tem que ser feito, porque nunca há nada a ser feito e o que quer que você faça, na situação que se armou, é inútil e só vai servir à sua vaidade ou ao seu orgulho"; "Venha comigo, Imre".
Noemi Jaffe in: Írisz: As Orquídeas (Cia. das Letras).
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segunda-feira, 21 de novembro de 2016
das coisas
As coisas nunca são só o que parecem. E nunca são só acerca de ti.
Inês Pedrosa in: Dentro de ti ver o mar.
Inês Pedrosa in: Dentro de ti ver o mar.
das promessas
(...) com suas promessas nunca alcançáveis, com suas promessas que estavam sempre um passo adiante do alcance das nossas mãos, como a cenoura que pende da ponta de uma vara e está sempre um passo adiante do focinho do burro e este, por não se dar conta de que a vara está presa às suas costas continua sempre a caminhar, certo de que está a ponto de alcançá-lo e saciar seu desejo.
Luis S. Krausz in: Bazar Paraná. Editora Benvirá.
Luis S. Krausz in: Bazar Paraná. Editora Benvirá.
sexta-feira, 4 de novembro de 2016
sem acreditar
- Você acha que vive melhor?
- Merda por merda, acho que eu ainda prefiro a minha.
- Você encontra algum prazer nas coisas que faz, você está satisfeito consigo mesmo, era isso que você queria?
- Você sabe o que eu queria, Lena - disse ele, olhando-a significativamente.
- Não me venha com demagogia. Se você queria tanto, por que se esforçou tanto para me perder?
- Eu sei que você não acredita, mas eu te amei do modo mais sensível.
(Maria Adelaide Amaral in: Aos meus amigos. Ed. Globo, p. 142)
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- Merda por merda, acho que eu ainda prefiro a minha.
- Você encontra algum prazer nas coisas que faz, você está satisfeito consigo mesmo, era isso que você queria?
- Você sabe o que eu queria, Lena - disse ele, olhando-a significativamente.
- Não me venha com demagogia. Se você queria tanto, por que se esforçou tanto para me perder?
- Eu sei que você não acredita, mas eu te amei do modo mais sensível.
(Maria Adelaide Amaral in: Aos meus amigos. Ed. Globo, p. 142)
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quinta-feira, 6 de outubro de 2016
ainda menos
- Eu não gostei da sua ironia!
- Você ia gostar menos ainda da minha sinceridade.
(Maria Adelaide Amaral in: Aos meus amigos. Ed. Globo, p. 169)
- Você ia gostar menos ainda da minha sinceridade.
(Maria Adelaide Amaral in: Aos meus amigos. Ed. Globo, p. 169)
terça-feira, 4 de outubro de 2016
shhhhh
Tendo uma índole introspectiva inata, adora segredos. Finge ignorar aquilo que sabe, e o que se passa no seu coração dificilmente lhe chega aos lábios. O que é pior é que ela considera esse tipo de reserva uma virtude feminina.
Junichiro Tanizaki in: A chave. Companhia Das Letras, p. 8.
Junichiro Tanizaki in: A chave. Companhia Das Letras, p. 8.
quinta-feira, 22 de setembro de 2016
vivemos desconcentrados
- Que sabes tu da felicidade?
- O mesmo que tu. O mesmo que todas as pessoas que cansaram de a procurar.
- Eu nem tentei. Nunca acreditei na possibilidade de ser feliz.
- Tanto faz. Não é uma questão de procura, apenas de atenção. A atenção demora. Vivemos desconcentrados.
- Foste feliz, tu?
- Aprendi a ser. Sou feliz, agora.
Inês Pedrosa in: Desnorte. Ed. Dom Quixote.
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- O mesmo que tu. O mesmo que todas as pessoas que cansaram de a procurar.
- Eu nem tentei. Nunca acreditei na possibilidade de ser feliz.
- Tanto faz. Não é uma questão de procura, apenas de atenção. A atenção demora. Vivemos desconcentrados.
- Foste feliz, tu?
- Aprendi a ser. Sou feliz, agora.
Inês Pedrosa in: Desnorte. Ed. Dom Quixote.
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quarta-feira, 21 de setembro de 2016
do amor, da fúria
(...) na realidade, o amor não me passou tão depressa quanto a fúria: agarrava-me àquela frase do timbre.
Inês Pedrosa in: Desnorte. Ed. Dom Quixote.
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Inês Pedrosa in: Desnorte. Ed. Dom Quixote.
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sexta-feira, 16 de setembro de 2016
terça-feira, 30 de agosto de 2016
do silêncio
Ela precisava aprender a se calar em vez de ficar procurando palavras para o que não cabe nelas. Cacoete de achar que o silêncio incomoda, intimida.
Adriana Lisboa in: O sucesso. Ed. Alfaguara, p. 80.
Adriana Lisboa in: O sucesso. Ed. Alfaguara, p. 80.
segunda-feira, 1 de agosto de 2016
e não foi inútil
Sempre me chamava de Pedrito. Jamais me chamou de Pedro Juan. Era doce ouvir sua voz acariciando meu nome. Eu me concentrava tanto quando a olhava que ela devia saber que estava mais apaixonado do que um cão. Que não podia viver sem olhar para ela todo dia. Claro que sabia. E devia rir de mim. (...) Perdi muito tempo nessa paixão inútil e deliciosa. Ou talvez não. E não foi inútil. É uma das lembranças mais bonitas que eu tenho na memória. Foi um amor intenso e profundo. De mão única. Não havia reciprocidade. Depois, com o passar dos anos, aprendi que quase sempre o amor se manifesta assim: numa direção só. É uma corrente que flui num sentido e poucas vezes tem resposta. Felizes aqueles que conseguem usufruir um amor que se manifesta, com a mesma força, nas duas direções.
Pedro Juan Gutierréz in: Fabián e o caos. Ed. Alfaguara, p. 48-49.
Pedro Juan Gutierréz in: Fabián e o caos. Ed. Alfaguara, p. 48-49.
segunda-feira, 4 de julho de 2016
do irritante
De forma curiosa, a sua voz, apesar de terrivelmente fraca, dessa vez é ouvida perfeitamente. Existe, na realidade, uma circunstância em que até a voz mais fraca é ouvida. É quando profere ideias que nos irritam.
Milan Kundera in: A Lentidão. Editora Nova Fronteira, p.86.
Milan Kundera in: A Lentidão. Editora Nova Fronteira, p.86.
sábado, 25 de junho de 2016
do amor
O sentimento de ser eleito está presente, por exemplo, em toda relação amorosa. Pois o amor, por definição, é até mesmo prova de um verdadeiro amor. Se uma mulher me diz: amo você porque você é inteligente, poque é honesto, porque me compra presentes, porque não anda atrás das outras, porque lava a louça, fico decepcionado; esse amor me parece interesseiro.Como é mais bonito ouvir: sou louca por você apesar de você não ser nem inteligente, nem honesto, apesar de você ser mentiroso, egoísta, ordinário.
Milan Kundera in: A Lentidão. Editora Nova Fronteira, p.57.
sexta-feira, 17 de junho de 2016
escapa
Há algo de apavorante em ser tão pessoal e tão pública. Por instinto de preservação ou maneirismo, ela teme tornar-se demasiado visível. Cada vez mais refugia-se no enigma. Das mentiras, dos romances. Dirão que ela complica por gosto. Sim, sem dúvida é o que deseja. Na maior parte do tempo, vão atrás dela cegamente. Sem tentar compreender. A arte deslumbra. Ela escreve. Ela foge. Cada livro é uma escapada. Ele vive, no lugar dela, sua história maldita, proibida. Ele a torna suportável.
Frédérique Lebelley in: Marguerite Duras - uma vida por escrito. Ed. Scritta, p. 148.
Frédérique Lebelley in: Marguerite Duras - uma vida por escrito. Ed. Scritta, p. 148.
quinta-feira, 16 de junho de 2016
de Lol V. Stein
Frequentemente, pouca coisa basta - um certo olhar, um certo riso, jovial, espontâneo - para inspirar a Duras um personagem que, em seguida, se impõe a ela, soberano e indestrutível. Dessa vez, trata-se de uma jovem doente que ela teve de acolher em sua casa, por um dia, e que, à noite, mandou de volta ao asilo. "Eu a conheci durante um dia inteiro", disse Duras, como se tivesse dito: a vida inteira. Não tornara a vê-la. Mas desse breve período vai nascer Lol V. Stein, esse personagem de nome estranho "que não nomeia", oco, trespassado no centro por um furo. Durante doze anos ela habitará toda a obra de Marguerite Duras.
Frédérique Lebelley in: Marguerite Duras - uma vida por escrito. Ed. Scritta, p. 162.
Frédérique Lebelley in: Marguerite Duras - uma vida por escrito. Ed. Scritta, p. 162.
segunda-feira, 13 de junho de 2016
da (não)contemplação
"Vocês bebem chá no seu país?"
"No Brasil? Menos que café."
"Por causa do calor?"
"Por causa do nosso temperamento. Há muita contemplação em uma xícara de chá."
"E você não tem tempo para contemplar?"
"O tempo nos irrita. Nós estamos sempre querendo reiniciar a contagem, recomeçar do zero. O Brasil deve ser o único país do mundo onde as pessoas se desejam um bom ano duas vezes ao ano. no início de janeiro e no início de março. Como se a gente estivesse o tempo todo dizendo: esquece o passado, é a partir de agora que está valendo."
"E o café será para isso?"
"O café é uma bebida de um minuto, que se bebe antes de se tomar uma decisão ou antes de se planejarem as próximas duas horas do dia. O café é uma bebida sem memória".
"E o Brasil é um país sem memória?"
João sorri, dá de ombros. Foda-se a tradição, essa é a nossa tradição."
"Falando assim até parece que você odeia o Brasil."
"Não, diz João Pedro lentamente, navegando o sachê pela xícara. "Somos inofensivos, queremos ficar de bem com todo mundo. É o que nos salva".
Caio Yurgel in: Samba sem mim. Ed.Benvirá.
"No Brasil? Menos que café."
"Por causa do calor?"
"Por causa do nosso temperamento. Há muita contemplação em uma xícara de chá."
"E você não tem tempo para contemplar?"
"O tempo nos irrita. Nós estamos sempre querendo reiniciar a contagem, recomeçar do zero. O Brasil deve ser o único país do mundo onde as pessoas se desejam um bom ano duas vezes ao ano. no início de janeiro e no início de março. Como se a gente estivesse o tempo todo dizendo: esquece o passado, é a partir de agora que está valendo."
"E o café será para isso?"
"O café é uma bebida de um minuto, que se bebe antes de se tomar uma decisão ou antes de se planejarem as próximas duas horas do dia. O café é uma bebida sem memória".
"E o Brasil é um país sem memória?"
João sorri, dá de ombros. Foda-se a tradição, essa é a nossa tradição."
"Falando assim até parece que você odeia o Brasil."
"Não, diz João Pedro lentamente, navegando o sachê pela xícara. "Somos inofensivos, queremos ficar de bem com todo mundo. É o que nos salva".
Caio Yurgel in: Samba sem mim. Ed.Benvirá.
quarta-feira, 25 de maio de 2016
das mudanças
Mudanças despencavam sobre sua família feito fatalidades, não refletiam vontades individuais mas sim tremores coletivos, o telefone tocava às três da manhã e sua mãe já despertava com a mão no peito, Deus na ponta da língua.
Caio Yurgel in: Samba sem mim. Ed.Benvirá.
quarta-feira, 11 de maio de 2016
da escrita
E Duras, aniquilada por esses profundos transtornos, entrega-se à psicanálise. Chega até mesmo a se perguntar sobre o sentido dos livros. Deve continuar? O médico ouve, lê seus escritos e interrompe as sessões: "A senhora não tem nada o que fazer aqui. A solução para a senhora é escrever".
Frédérique Lebelley in: Marguerite Duras - uma vida por escrito. Ed. Scritta, p. 162.
Frédérique Lebelley in: Marguerite Duras - uma vida por escrito. Ed. Scritta, p. 162.
segunda-feira, 25 de abril de 2016
do que é essencial
O que censuro nos jornais é nos fazer prestar atenção, todos os dias, nas coisas insignificantes, ao passo que lemos três ou quatro vezes na vida os livros em que há coisas essenciais.
Marcel Proust
Marcel Proust
segunda-feira, 18 de abril de 2016
do silêncio
Que força tem o silêncio quando se estende muito além do incômodo imediato, muito além da mágoa.
Julián Fuks in: A resistência. Companhia das Letras, p. 15.
Julián Fuks in: A resistência. Companhia das Letras, p. 15.
segunda-feira, 4 de abril de 2016
das certezas
Ninguém me tira
a certeza de ter te habitado.
Poesias nunca publicadas de Caio Fernando Abreu. Ed. Record, p. 33.
a certeza de ter te habitado.
Poesias nunca publicadas de Caio Fernando Abreu. Ed. Record, p. 33.
domingo, 3 de abril de 2016
do livro
(...) Conhece A. Lobo Antunes? Lobo Antunes enunciou, em conferência, O livro é o travesseiro que o escritor vai fazendo, durante a vida, para se deitar. E meu amigo Humberto Werneck, ele foi o mediador da conferência, disse-me Não é para se deitar e ver televisão, não, Felipe, é muito mais sério: é para se deitar e morrer. Morrer. É o corpo lavado com água, envolto em mortalha, colocado em uma simples caixa de madeira.
Felipe Franco Munhoz in: Mentiras. Ed. Nós, p. 13-14.
Felipe Franco Munhoz in: Mentiras. Ed. Nós, p. 13-14.
sábado, 2 de abril de 2016
do escrever
(...) e depois foi-me passando a raiva, digam o que disserem é sempre por causa disso que se escreve, a raiva é a gasolina do espírito, o engenho e a arte vêm por acréscimo, e a mim passou-me.
Inês Pedrosa in: Desnorte. Ed. Dom Quixote.
Inês Pedrosa in: Desnorte. Ed. Dom Quixote.
sexta-feira, 1 de abril de 2016
disponibilidade distante
Marguerite é de uma disponibilidade distante, talvez altiva mas sem desprezo. Exatamente com aquele olhar que não consegue não ser de uma zombaria impiedosa. O homem compreende que a conquistará, mas a preço de sofrimento.
Frédérique Lebelley in: Marguerite Duras - uma vida por escrito.
Frédérique Lebelley in: Marguerite Duras - uma vida por escrito.
segunda-feira, 28 de março de 2016
do narrar
Narrar significa fazer escolhas. Dentre tantas cartas, puxar uma por vez. Contar uma história exige, às vezes, objetividade. Por isso, pego agora em sua mão, leitor, e o conduzo até 20 anos antes da morte de Teresa. Os motivos que me levam a isso, bem que lhe podem interessar. Talvez por uma crença quase mística, mas muito mais filosófica de que tudo no mundo está interligado. Ou também, e principalmente, porque narrando nem tudo estará para sempre perdido.
Micheliny Verunschk in: Nossa Teresa - vida e morte de uma santa suicida. Ed. Patuá, p. 137.
Micheliny Verunschk in: Nossa Teresa - vida e morte de uma santa suicida. Ed. Patuá, p. 137.
sexta-feira, 11 de março de 2016
Poucos livros, tantos templos
Mas, num lugarejo com tão poucos livros e tantos templos, com tão pouca arte e tantos bares, a queda não se torna coisas rara. Ora, é claro que toda vida é um labirinto de Creta. Uns, com a sorte de ter uma Maria Kodama por Minotauro ou Ariadne como centro e fim, outros com a infelicidade de se ter apenas sua própria desesperança como o grande devorador.
Micheliny Verunschk in: Nossa Teresa - vida e morte de uma santa suicida. Ed. Patuá, p.91.
Micheliny Verunschk in: Nossa Teresa - vida e morte de uma santa suicida. Ed. Patuá, p.91.
quinta-feira, 10 de março de 2016
segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016
da ficção
A língua nem sempre usa gravata e sapato social. O objetivo da ficção não é a correção gramatical, mas fazer o leitor se sentir à vontade e, depois, contar uma história... Fazer com que ele esqueça, sempre que possível, que está lendo uma história.
Stephen King in: Sobre a escrita. Suma de Letras, p.118.
Stephen King in: Sobre a escrita. Suma de Letras, p.118.
sábado, 27 de fevereiro de 2016
das recordações
De qualquer forma, o meu coração é uma floresta cheia de nevoeiro - guarda tudo e não encontra nada. Sou uma recordadora profissional. Vivo de recordações, mesmo daquilo que ainda não fiz. E repito obsessivamente os mesmos truques. Iludo-me. Penso que amanhã é que vai ser.
Inês Pedrosa in: Desnorte. Publicações Dom Quixote.
Inês Pedrosa in: Desnorte. Publicações Dom Quixote.
sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016
E o que quê disso quer dizer?
"É apenas um carro", disse Kováč, debaixo do semáforo fechado.
"Talvez no resto do mundo. Não na Alemanha."
Kováč riu. "Pois a mim me agrada. É compacto, econômico, livre da pretensão fálica alemã."
João Pedro enrugou a testa, Phallische o quê?
"Complexo de potência", começou a esclarecer Kováč, mas deixou por isso mesmo, acelerou (mas não muito), duas quadras ficaram para trás.
"Macht-Komplex?", repetiu, cuidadoso, duas quadras depois, João Pedro.
Kováč manteve o silêncio por mais algumas curvas e então disse: "Um grande pensador francês, Rôlãn Bárt, afirmou certa vez que os franceses são uma civilização de vergonha e os alemães, de culpa". Pequena pausa, semáforo. "Os automóveis alemães são disso um exemplo".
Grande pausa, João Pedro: "E o que quê disso quer dizer?".
Kováč deu de ombros.
(Caio Yurgel in: Samba sem mim. Ed. Benvirá)
"Talvez no resto do mundo. Não na Alemanha."
Kováč riu. "Pois a mim me agrada. É compacto, econômico, livre da pretensão fálica alemã."
João Pedro enrugou a testa, Phallische o quê?
"Complexo de potência", começou a esclarecer Kováč, mas deixou por isso mesmo, acelerou (mas não muito), duas quadras ficaram para trás.
"Macht-Komplex?", repetiu, cuidadoso, duas quadras depois, João Pedro.
Kováč manteve o silêncio por mais algumas curvas e então disse: "Um grande pensador francês, Rôlãn Bárt, afirmou certa vez que os franceses são uma civilização de vergonha e os alemães, de culpa". Pequena pausa, semáforo. "Os automóveis alemães são disso um exemplo".
Grande pausa, João Pedro: "E o que quê disso quer dizer?".
Kováč deu de ombros.
(Caio Yurgel in: Samba sem mim. Ed. Benvirá)
quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016
Sossega, sossega
A solidão é tão nítida como companhia. Vou me adequando, vou me amoldando. Nem sempre é horrível. Às vezes é até bem mansinha. Mas sinto que o amor acabou. [...] Repito sempre: sossega, sossega - o amor não é para o teu bico.
Carta de Caio F. para Jacqueline Cantore, 18-04-1985, publicada em Caio Fernando Abreu - Cartas, organizado por Italo Moriconi. Ed. Aeroplano, p. 127.
Carta de Caio F. para Jacqueline Cantore, 18-04-1985, publicada em Caio Fernando Abreu - Cartas, organizado por Italo Moriconi. Ed. Aeroplano, p. 127.
terça-feira, 23 de fevereiro de 2016
do que é inútil - Caio F.
Se me ouvisses, eu pediria perdão.
Mas os ouvidos de quem não ama
são sempre surdos para quem tentou em vão
ultrapassar os muros.
Se me amasses eu me transformaria
num lago doce de mel para te alimentar.
Mas a doçura de quem não recebeu amor
se eriça feito um bicho ferido
e em sua toca, dobrado sobre si,
lambe sozinho a própria dor,
disposto a morder para salvar
o que talvez tenha sobrado de:
vida, embora inútil.
9 de abril de 1985
Caio Fernando Abreu in: Poesias nunca publicadas de Caio Fernando Abreu. Ed. Record, p. 155.
Mas os ouvidos de quem não ama
são sempre surdos para quem tentou em vão
ultrapassar os muros.
Se me amasses eu me transformaria
num lago doce de mel para te alimentar.
Mas a doçura de quem não recebeu amor
se eriça feito um bicho ferido
e em sua toca, dobrado sobre si,
lambe sozinho a própria dor,
disposto a morder para salvar
o que talvez tenha sobrado de:
vida, embora inútil.
9 de abril de 1985
Caio Fernando Abreu in: Poesias nunca publicadas de Caio Fernando Abreu. Ed. Record, p. 155.
sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016
do amor
Mas o amor é como a pintura. Só piora com a reprodução.
Inês Pedrosa in: Desnorte. Publicações Dom Quixote.
Inês Pedrosa in: Desnorte. Publicações Dom Quixote.
quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016
o que se merece
Porque, às vezes, na vida, a justiça se cumpre e, se o homem esquece facilmente e costuma lembrar de si mesmo só aquilo que lhe traz honra, há livros onde tudo é registrado, cada momento da nossa existência, de modo que nos possa ser dado, até a última moeda, o que merecemos.
Dino Buzzati in: Naquele exato momento. Ed. Objetiva, p. 16.
Dino Buzzati in: Naquele exato momento. Ed. Objetiva, p. 16.
terça-feira, 16 de fevereiro de 2016
dos abismos
Somos ilhas solitárias, semeadas no oceano, e um imenso espaço as separa. Beijos, juramentos, lágrimas; são como pequenas pontes, ridículos gravetos que atiramos, da margem, para ultrapassar abismos.
Dino Buzzati in: Naquele exato momento. Ed. Objetiva, p.31-32.
Dino Buzzati in: Naquele exato momento. Ed. Objetiva, p.31-32.
segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016
dos escritores
Um escritor é alguém congenitamente incapaz de dizer a verdade. Por isso, o que ele escreve chama-se ficção.
William Faulkner
William Faulkner
sábado, 13 de fevereiro de 2016
do silêncio e o poder
Ele estava disposto a fazer seu silêncio durar mais que o dela, vencê-la na maratona do orgulho ferido, pois sabia (tinha aprendido a lição) que em todo e qualquer relacionamento informação é poder, e a parte que ama mais, e que sabe que ama mais, é a primeira a dar com a língua nos dentes e terminar sozinha. Então nada dizia. Queria, mas nada dizia.
Caio Yurgel in: Samba sem mim. Ed. Benvirá.
Caio Yurgel in: Samba sem mim. Ed. Benvirá.
terça-feira, 2 de fevereiro de 2016
alguém para chamar de seu
Não saberia como palmilhar o caminho solitariamente, já que nunca acreditei naqueles versos espanhóis que dizem "Não há caminho, pois o caminho se faz caminhando". Uma ova!
Acredito piamente que, no correr da vida de todo e cada ser humano, há um momento em que se elege alguém para ser seu...
Silviano Santiago in: Mil rosas roubadas. Companhia das Letras, p. 28.
Acredito piamente que, no correr da vida de todo e cada ser humano, há um momento em que se elege alguém para ser seu...
Silviano Santiago in: Mil rosas roubadas. Companhia das Letras, p. 28.
sexta-feira, 29 de janeiro de 2016
difícil análise
(...) uma espécie de admiração confusa como, diante de grandes obras de arte ou maravilhas da natureza, ficamos a princípio atônitos e incapazes de análise.
André Gide in: Isabelle. Ed. Nova Fronteira, p. 29.
André Gide in: Isabelle. Ed. Nova Fronteira, p. 29.
quinta-feira, 28 de janeiro de 2016
vá logo
Menino, se você não é comunista, vá sendo logo, que é para deixar de ser depressa. Eu já fui e já larguei.
Carlos Drummond De Andrade - aconselhando o jovem que lhe cobrou uma "posição".
Carlos Drummond De Andrade - aconselhando o jovem que lhe cobrou uma "posição".
segunda-feira, 25 de janeiro de 2016
dos caminhos
(...) há sempre um dia que nos perguntamos
fui eu quem me fez assim ou me fizeram?
e a resposta importa pouco, importa nada;
seja qual for, não voltará jamais o que perdeste
em alguma esquina do caminho, não sabes onde,
não sabemos como, e mesmo o choro então é pouco para
[tua dor
E ainda que compres rosas ou vás ao cinema ou cantes
uma canção qualquer, o que persiste é a morte
com seu roteiro de vermes e distâncias.
no dia seguinte ao dia em que não morremos,
iniciados na tarefa de tecer o inútil
trocamos os lençóis, lavamos o rosto, arrumamos a casa e
[partimos para a rua
sem que ninguém perceba o epitáfio sobre a fronte.
Caio Fernando Abreu in: Poesias nunca publicadas de Caio Fernando Abreu. Poema: Invernal. Record, p. 96-97.
fui eu quem me fez assim ou me fizeram?
e a resposta importa pouco, importa nada;
seja qual for, não voltará jamais o que perdeste
em alguma esquina do caminho, não sabes onde,
não sabemos como, e mesmo o choro então é pouco para
[tua dor
E ainda que compres rosas ou vás ao cinema ou cantes
uma canção qualquer, o que persiste é a morte
com seu roteiro de vermes e distâncias.
no dia seguinte ao dia em que não morremos,
iniciados na tarefa de tecer o inútil
trocamos os lençóis, lavamos o rosto, arrumamos a casa e
[partimos para a rua
sem que ninguém perceba o epitáfio sobre a fronte.
Caio Fernando Abreu in: Poesias nunca publicadas de Caio Fernando Abreu. Poema: Invernal. Record, p. 96-97.
terça-feira, 19 de janeiro de 2016
o pessimista
É melhor ser pessimista que otimista. É porque o pessimista fica feliz quando acerta e quando erra.
Millôr Fernandes
Millôr Fernandes
segunda-feira, 18 de janeiro de 2016
das dores
...à mãe cabia ensinar à filha que aquela dor não era maior do que qualquer outra, sabido que o banal da vida era assim: fazer o suficiente com aquilo que a dor faz de você.
Estevão Azevedo in: Tempo de espalhar pedras. Cosac & Naify, p. 230.
Estevão Azevedo in: Tempo de espalhar pedras. Cosac & Naify, p. 230.
sexta-feira, 15 de janeiro de 2016
Das pipas
Quanto a Huong e Lihn, que conheciam bem essa história (a partir da fase náutica), suas pequenas almas também não pareciam estar ali, presentes, quando seus pés pisavam as calçadas das novas cidades pelas quais passavam. Mesmo quando aprendiam palavras do novo idioma e decifravam os costumes esquisitos de seu novo país.
Suas almas não estavam grudadas no corpo, Alex pensava. Pairavam em algum outro lugar, como se fossem pipas que elas empinavam e que flutuavam lá no alto, onde havia mais ar puro e menos todas as outras coisas.
Adriana Lisboa in: Hanói. Ed. Alfaguara, p. 46-47.
Imagem: Portinari
Suas almas não estavam grudadas no corpo, Alex pensava. Pairavam em algum outro lugar, como se fossem pipas que elas empinavam e que flutuavam lá no alto, onde havia mais ar puro e menos todas as outras coisas.
Adriana Lisboa in: Hanói. Ed. Alfaguara, p. 46-47.
Imagem: Portinari
quarta-feira, 13 de janeiro de 2016
outro jeito de falar
(...) que vai ver estava com medo do que podia sair da minha boca se me deixasse falar, esse jeito de conversar comigo a duas vozes, a dela perguntando e a dela mesmo respondendo por mim, eu até achando aquilo cômodo, calada, sem precisar nem mentir nem desagradar, nem concordar nem discordar...
Maria Valéria Rezende in: Quarenta Dias. Ed. Alfagua, p. 74.
Maria Valéria Rezende in: Quarenta Dias. Ed. Alfagua, p. 74.
segunda-feira, 11 de janeiro de 2016
domingo, 10 de janeiro de 2016
e se
“E, se um homem pode dormir salgado de mar e pela manhã se descobrir guardador de rebanho, e se um outro acordou inseto na mente de um escritor, e se dos desenhos de uma pintora floresceu um abaporu, e se numa tela imóvel irromperam formigas e um cão andaluz, e se campos e ramos e rosas pariram territórios imaginários, tu podes amanhecer tristeza, entardecer esperança e anoitecer sol.”
João Anzanello Carrascoza in: Caderno de um ausente. Cosac Naify
João Anzanello Carrascoza in: Caderno de um ausente. Cosac Naify
sábado, 9 de janeiro de 2016
dos amigos
No jogo de bilhar da amizade, a prerrogativa fora minha: eu o tinha sorteado para ser a eterna bola da vez. Que assumisse a condição.
Silviano Santiago in: Mil rosas roubadas. Companhia das Letras, p. 27.
Silviano Santiago in: Mil rosas roubadas. Companhia das Letras, p. 27.
quarta-feira, 6 de janeiro de 2016
da leitura
A leitura de Proust, de Blanchot, de Kafka, de Artaud não me deu vontade de escrever sobre estes autores (nem sequer, acrescento, como eles), mas sim de escrever. Nessa perspectiva, a leitura é verdadeiramente uma produção: não já de imagens interiores, de projecções, de fantasmas, mas, à letra, de trabalho: o produto (consumido) é transformado em produção, em promessa, em desejo de produção, e a cadeia engendra, até o infinito.
Roland Barthes in: O rumor da língua. Edições 70, p. 36.
Roland Barthes in: O rumor da língua. Edições 70, p. 36.
terça-feira, 5 de janeiro de 2016
da ironia
A ironia irrita. Não porque ela zombe ou ataque, mas porque nos priva de certezas, desvendando o mundo com ambiguidade.
Milan Kundera
Milan Kundera
segunda-feira, 4 de janeiro de 2016
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