"Don Juan não tem memória, porque a memória supõe um respeito pelo outro, uma possibilidade de ser afetado por ele, que em nada condiz com a dimensão narcísica que nele predomina avassaladoramente. Entretanto, por que esta busca incessante de si próprio precisa passar pela conquista das mulheres? Por que estas se deixam seduzir? Talvez a resposta às duas perguntas seja uma só. Pois, se o que caracteriza o desejo de Don Juan não é a vontade de poder, é certo que este desejo vem carregado de uma paixão de tal forma abrasadora, que transfigura o próprio alvo dela. O narcisismo tem a propriedade de idealizar seus objetos, de neles projetar uma luz que os faz aparecer como perfeitos, à própria imagem do ideal de perfeição que sustenta a vibração narcísica. E Don Juan faz ressoar nas mulheres de quem se aproxima esta nota narcísica, embelezando todas as que lhe passam pela frente, vendo em cada uma delas algo que a torna desejável em grau supremo: a grandona se torna “majestosa”, a gorducha é magnífica nas noites de inverno, a velhota exala uma grande doçura... Seu desejo as enobrece, e daí nasce o efeito sedutor, na precisa formulação de Kierkegaard, porque este desejo as torna diferentes do que eram, até um momento atrás, a seus próprios olhos. O jogo da sedução se enraíza assim numa reduplicação do narcisismo, tanto do agente quanto do objeto seduzido. E o efeito transfigurador da idealização não termina com a ferida narcísica do abandono: o momento passageiro em que cada uma delas foi para Don Juan a mulher absoluta, a encarnação do eterno feminino, parece bastar para que nela algo de muito profundo seja modificado, algo que o psicanalista situaria na esfera das identificações". (pp. 94-95)
(MEZAN, Renato. Mille e quattro, mille e cinque, mille e sei - novas espirais da sedução. In: DAVID, Renato Janine Ribeiro (org.). A sedução e suas máscaras - ensaios sobre Don Juan. São Paulo: Companhia das Letras: 1988.)
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Se a zona de conforto masculina é o sinestésico e a zona de perdição é o visual (vide as "piriguetes!), para as mulheres, a zona de conforto é o visual e a de perdição o auditivo. A sedução das mulheres, como Dom Juan mostra, passa pelas palavras que reconstroem o imaginário narcísico, de uma forma mais profunda que o visual.
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