terça-feira, 28 de abril de 2015

ou talvez

"Escutar é o mais perigoso", pensei, "é saber, é ser inteirado e estar a par, os ouvidos não têm pálpebras que se possam fechar instintivamente ao que é dito, não se podem resguardar do que se pressente que se vai escutar, sempre é tarde demais. Agora já sabemos, e pode ser que isso manche nossos corações tão brancos, ou talvez sejam pálidos e temerosos, ou acovardados".

Javier Marías in: Coração tão branco. Martins Fontes, p. 279.

quarta-feira, 8 de abril de 2015

algo que se rasga


Luisa não compreendeu que eu não tivesse querido continuar perguntando, as mulheres sentem uma curiosidade sem mescla, sua mente é indagatória e bisbilhoteira mas também inconstante, não imaginam ou não antecipam a índole do que ignoram, do que pode vir a ser averiguado e do que pode vir a ser feito, não sabem que os atos se cometem sozinhos ou que uma só palavra os põe em marcha, precisam experimentar, não prevêem, talvez estejam dispostas a saber quase sempre, em princípio não temem nem suspeitam o que se possa contar-lhes, não se lembram que depois de saber às vezes tudo muda, inclusive a carne ou a pele que se abre, ou algo que se rasga.

Javier Marías in: Coração tão branco. Martins Fontes, p. 146.

terça-feira, 7 de abril de 2015

das esperas


(...) quem espera, ainda que de má vontade, acaba querendo esgotar ao máximo suas possibilidades, ou esperar vicia.

Javier Marías in: Coração tão branco. Martins Fontes, p. 186.

quarta-feira, 1 de abril de 2015

da - suposta - compreensão


Sofía emudeceu, olhou para ele sem vê-lo e piscou várias vezes em seguida, como se saísse de uma espécie de transe. Depois sorriu e o acariciou suave, ternamente, com aquele ar compreensivo que Rímini conhecia tão bem, como se aceitasse, magnânima, as razões que o levaram a mudar de assunto, mas deixasse evidente, ao mesmo tempo, que não concordava com elas e, até, que as considerasse infantis, filhas não da vontade, e sim do medo, ou seja, de um desejo que Rímini continuava sentindo sem ter coragem de admitir, e portanto candidatas a uma fácil refutação; e Rímini percebeu novamente como a compreensão, com sua prodigiosa capacidade de capturar, absorver, assimilar, era o verdadeiro talismã de Sofía, o antídoto que lhe permitia recompor-se com eficácia e velocidade extraordinárias, deixando para trás os desacertos, os desastres, as loucuras, para transformá-los em grandes façanhas malditas que punham em evidência a insensibilidade ou a idiotice do mundo.

Alan Pauls in: O passado. Cosac Naify, p. 393.